Filme traz uma história de horror elegante e atemporal
Antônio Pedro de Souza
Criança em cena é sempre uma surpresa. Elas podem ser meigas, fofas, pirracentas, mas sempre rendem boas cenas. Mas, e quando as crianças subvertem toda a ordem pré-estabelecida pelo universo cinematográfico e se mostram maldosas, psicóticas ou demoníacas? “O Bebê de Rosemary”, filme de Roman Polanski lançado em 1968 baseado no romance homônimo de Ira Levin traz bem a gênese deste tipo de filme sem precisar mostrar a tal criança encapetada.
Tudo começa quando Rosemary e seu marido Guy se mudam para um prédio onde, no passado, coisas estranhas – sempre ligadas ao ocultismo e/ou satanismo – aconteceram. Há a lenda de duas irmãs que comiam criancinhas, bem como de um homem que, antes da virada do século, quase foi morto pela população enfurecida na porta do edifício por praticar bruxaria.
O prédio, no entanto, é histórico e possui um valor imensurável para os apreciadores da arte, como Rosemary e Guy. Por isso, o casal se muda para lá, apesar dos apelos do amigo Hutch, para que façam o contrário.
No princípio, a paz parece reinar entre as quatro paredes do apartamento, mesmo com o trágico fim da moradora anterior: a velha senhora entrou em coma subitamente e morreu, sem explicação lógica por parte dos médicos. Na lavanderia do Bramford (o tal prédio), Rosemary conhece Terry, jovem órfã que mora com os Castevets, casal idoso que reside no mesmo andar de Rose. Terry explica que Roman e Minnie Castevet a tiraram de uma vida de drogas e prostituição e praticamente a adotaram. As duas jovens se tornam amigas, mas Terry tem um trágico fim pouco depois: ela supostamente comete suicídio atirando-se da janela.
Neste momento turbulento, Minnie e Roman se aproximam de Rosemary e Guy, passando a dedicar-lhes atenção total e, muitas vezes, até sufocante. Chega a ser hilária a cena em que Minnie leva uma amiga para conhecer Rosemary. As duas chegam ao apartamento, sentam-se no sofá, tiram agulhas e linhas e começam a tricotar como se estivessem em suas próprias casas, enquanto Rosemary olha a cena atônita.
A vida segue seu curso com o casal planejando ter um bebê e Guy tentando um papel em alguma peça importante de teatro. Guy também passa a se aproximar consideravelmente dos Castevets, para receio da esposa. Na noite em que Rosemary está em seu período fértil, Minnie aparece com duas taças de mousse de chocolate e oferece ao casal. Rose não gosta do sabor, mas é influenciada pelo marido a comer. Ela disfarça e joga um pouco fora, mas se sente mal logo depois, desmaiando. Enquanto está desacordada, Rosemary tem pesadelos sobre um ritual do qual participam Guy, Minnie, Roman e outros moradores do Bramford. No ritual, ela é estuprada e sente uma presença maligna entre os participantes. Ao acordar, a moça vê seu corpo terrivelmente arranhado e Guy explica que suas unhas quebraram enquanto transavam à noite. Dias depois ela se descobre grávida.
A partir daí, o filme assume seu lado mais turbulento: acompanhamos Rosemary entrar em pânico e passar a acreditar que existe uma conspiração contra ela e o bebê, fato corroborado por Hutch, que passa a estudar o caso e descobre serem os Castevets descendentes de poderosos bruxos. Hutch, porém, entra em coma e não consegue contar toda a verdade para Rosemary, mas deixa um livro de presente para a amiga.
Ao ler a obra, Rose começa a descobrir a verdade, mas é interrompida pelo marido, que passa a nutrir uma amizade sem igual ao casal de bruxos. Rose passa a acreditar, então, que eles estejam tentando “comprar” o bebê de Rose e Guy e, em, troca, ajudar Guy a ter sucesso na carreira.
Passa a fazer parte do clã dos bruxos o médico de Rosemary, Dr. Abraham Sapirstein, que não acredita na medicina moderna e passa a receitar os misteriosos sucos que Minnie faz. Debilitada, com dores e cheia de suspeitas, Rosemary passa a achar que existe uma grande conspiração contra ela e o bebê e, por isso, passa a defendê-lo de todos. Num determinado momento, ela foge e atravessa, abobalhada, uma avenida movimentada. A cena é de gelar a espinha.
Acreditando que seu marido também está envolvido no plano satânico para lhe tomar o bebê e a fim de protege-lo do complô, Rosemary recorre ao seu primeiro médico, Dr. Hill, e lhe conta toda a história. Julgando estar ela delirando, Dr. Hill chama Guy, que a leva de volta para casa, onde Rosemary tem o bebê.
Após o nascimento, os amigos de Minnie a fazem acreditar que o bebê nasceu morto, mas diariamente tiram leite de seus seios para ser “doado” a crianças órfãs. Certo dia em que não toma o remédio, Rosemary escuta um choro abafado de criança e descobre uma passagem entre seu apartamento e o de Minnie. Entrando no recinto, descobre um aglomerado de pessoas ao redor de um carrinho de bebê e, estupefata, vê a criança. Horrorizada com a aparência do “filho”, Rosemary entende que, desde o início, o plano era que ela tivesse o bebê, já que ele era o filho de Satã.
LIGAÇÕES
O Bebê de Rosemary faz parte da chamada Trilogia do Apartamento, nome dado por muitos críticos e estudiosos de cinema para o conjunto de três obras de Roman Polanski: Repulsa ao Sexo (1965), O Bebê de Rosemary (1968) e O Inqulino (1976). Embora os filmes não formem uma trilogia propriamente dita, já que possuem roteiros e personagens diferentes, trazem uma essência parecida: loucura, obsessão e terror psicológico. O filme também se encaixa na Trilogia do Demônio, outra denominação dada pelos amantes da sétima arte ao conjunto dos filmes O Bebê de Rosemary (1965), O Exorcista (1973) e A Profecia (1976). Também neste caso, não se trata de uma trilogia formal, mas de um ajuntamento temático: os três filmes trazem em seu enredo crianças às voltas com as forças do mal. Curiosamente, o próprio Roman Polanski fez uma volta aos seus filmes de apartamento em 2018 com Baseado em Fatos Reais, filme sobre uma escritora com bloqueio criativo que se vê às voltas com uma “escritora fantasma” psicótica.
ROTEIRO
Uma das adaptações mais fiéis da literatura, O Bebê de Rosemary suprime poucas passagens do livro de Ira Levin, lançado em 1967. Em geral, um pouco mais sobre a vida de Hutch e sua relação com Rosemary e Guy, explorada de modo mais profundo no livro, é mostrada mais superficialmente no filme.
A história, contada de forma linear, começa em 1965 e termina em 1966 e capta um pouco da essência daquela época: agitações políticas, visitas do Papa, etc.
Toda uma mitologia foi criada para dar o ar sombrio que o Bramford pedia: personagens fictícios ganham ares “reais” tanto no livro quanto no filme para que o público realmente imagine que eles existiram e que tais crimes aconteceram de verdade. Na vida real, o prédio usado como locação para o Bramford é o Dakota, em Nova York. Foi neste prédio que John Lennon foi assassinado em 1980.
Algumas cenas se tornaram icônicas, como a já citada em que Rosemary atravessa uma avenida movimentada. Neste caso específico, Roman Polanski mandou que a atriz atravesse a rua com o sinal aberto e disse que “ninguém teria coragem de atropelar uma grávida”.
Polanski também refilmou várias sequências, o que atrasou a produção do filme e aumentou seu orçamento numa época em que a Paramount não estava tão bem financeiramente.
A trilha sonora tem um canto de ninar tétrico, que prenuncia o efeito catastrófico daquele nascimento. Além disso, Für Elise é ouvida constantemente no apartamento dos Castevets e, vez ou outra, é substituída por cantos ritualísticos.
REALIDADE
Além dos atrasos e refilmagens de cenas, coisas mais graves aconteceram durante e após as filmagens de O Bebê de Rosemary: Mia Farrow se divorciou do marido Frank Sinatra, a esposa de Roman Polanski, Sharon Tate, foi morta por um membro da seita de Charles Manson, o compositor da trilha sonora do filme foi internado, entrou em coma e faleceu, entre outras “peculiaridades” que, mais tarde, passaram a ser tratadas como “as maldições” do filme. Curiosamente, tais maldições também serviram para aumentar o interesse do público sobre a obra, tornando-a até hoje uma das mais famosas do cinema.
ESTILO
O terror é um dos gêneros mais adaptáveis do cinema: desde o seu surgimento, com os monstros saídos da literatura como Drácula, Frankesntein, entre outros, passando pelos anos 50 e o filão de seres geneticamente modificados por radiação (O Mundo em Perigo, O Monstro da Lagoa Negra, etc.) e, finalmente, chegando aos anos 1960 com filmes que passaram a mostrar um lado glamoroso do mal. Filmes como Psicose e Festim Diabólico, de Alfred Hitchcock, por exemplo, exploram o começo deste momento, entre as décadas de 1950 e 1960: os assassinos não são seres de outros planetas, criaturas lendárias ou bichos radioativos, mas homens e mulheres “de bem” que, em geral, têm uma boa condição financeira, boa aparência, lar aconchegante, etc. São filmes visualmente bonitos, com uma imagem “limpa”, cores vivas e que em determinados momentos nos fazem acreditar estarmos assistindo a uma história de romance ou drama, até que o mal salta à nossa frente.
O mal aqui é, muitas vezes, subjetivo até a metade do filme. Temos tempo, assim, para conhecer a fundo os personagens e nos afeiçoarmos às suas histórias. Depois da metade, porém, toda a elegância começa a cair por terra e ficamos estarrecidos com tamanha brutalidade.
Com O Bebê de Rosemary acontece exatamente assim. Conhecemos um casal jovem, apaixonado, que sonha em ter filhos e passamos a torcer por eles; conhecemos um casal de idosos enxeridos que nos proporciona divertidas cenas e ficamos curiosos. Depois, conhecemos toda a brutalidade por trás daquela teoria da conspiração que surge nas entrelinhas e assume o protagonismo do roteiro.
O apartamento, tão belo e aconchegante, passa a ser uma prisão, um lugar assustador do qual ansiamos que a jovem Rosemary escape. Mas, e se tudo não passar de uma ilusão da jovem? É provável que ela só esteja assustada porque seu instinto materno esteja pedindo para que ela proteja o bebê. E é isso que torna o filme tão assustador: a partir do momento em que Rosemary passa a desconfiar dos seus vizinhos, a história segue essa linha dúbia: tudo é realmente uma maldição ou não passa de uma curiosa coincidência? Onde está a verdade?
As quase duas horas e meia de projeção não são nem um pouco cansativas, pois oferecem grandes momentos ao espectador, fazendo com que nos tornemos também investigadores. Passamos a observar todos os cantos, todos os ângulos em busca de algo que possa ajudar Rosemary a esclarecer suas dúvidas acerca da gravidez. Cenas como a da cabine telefônica, próxima ao fim do filme, servem para ressaltar essa ambiguidade do roteiro.
ATOS
O filme pode ser dividido em três grandes atos: No primeiro, conhecemos o casal protagonista, bem como o antagonista e o desejo de Rosemary engravidar. Esse ato termina com a moça descobrindo a gravidez. O segundo ato repassa todos os momentos da gravidez e o medo inconsciente de Rosemary acerca dos Castevets e seus aliados, encerrando com sua tentativa de fuga. O terceiro começa com a captura de Rosemary no consultório do Dr. Hill e seu parto, levando-a ao grande clímax que é a descoberta da verdade sobre Adrian, filho de Satã gerado por ela.
Cabe aqui uma curiosidade a respeito de Mia Farrow: ela foi a babá de Damien na refilmagem de A Profecia em 2006.
IMPORTÂNCIA
O filme abriu a porta para uma série de produções em que os protagonistas seriam atormentados por demônios e forças do mal. Além disso, enraizou na cultura popular esse medo do desconhecido e esse instinto protetor da mãe a despeito de qualquer outra coisa: Rosemary tenta proteger o bebê das forças malignas durante todo o filme e, ao fim, quando descobre de quem realmente se trata seu filho, é convencida a continuar cuidando dele, afinal, se trata “apenas” de uma criança “indefesa”.
As atuações são primorosas, a construção do figurino e do cenário é acertada, a escolha da trilha, idem e o roteiro cria um ar de paranoia que cresce lentamente à medida que o filme avança. Nada é “jogado” na cara do espectador. As coisas simplesmente acontecem, fluem normalmente como em um regato tranquilo. Assim, não somos obrigados a entender o sentido do filme, mas convidados a entrar na história. A filmagem acertada, nos faz espiar a vida de cada um dos personagens como se eles estivessem ali, do outro lado da sala e nós há apenas poucos metros deles, convivendo com eles, compartilhando seus segredos. E é aí que mora o grande terror psicológico de O Bebê de Rosemary: Os Castevets são como qualquer casal que temos entre os vizinhos ou dentro da própria família: idosos, carismáticos, gostam de receber visitas e de fazer visitas, curiosos, etc. Nós os convidaríamos normalmente para frequentarem nossa casa sem nos dar conta do perigo que correríamos. Assim aconteceu com Guy e Rosemary…
A subjetividade é tamanha e tão bem planejada que em nenhum momento vemos o bebê, mas apenas a fraca descrição de Rosemary no diálogo final: “O que vocês fizeram com ele? Com os pés, com os olhos?” já basta para ficarmos angustiados e, tal como a “mãe” de Adrian, aterrorizados. Sabemos que ali está uma presença maligna, que no futuro será destruidora, mas que no momento é “apenas” um inofensivo bebê.
Se isso não é loucura e ambiguidade suficientes, assista a esse clássico novamente reconsidere suas impressões.
FICHA TÉCNICA
Roteiro:
Roman Polanski
Ira Levin
Inspirado no livro de Ira Levin
Produtores:
Dona Holloway
William Castle
Elenco:
Mia Farrow – Rosemary Woodhouse
John Cassavetes – Guy Woodhouse
Ruth Gordon – Minnie Castevet
Sidney Blackmer – Roman Castevet
Charles Grodin – Dr. Hill
Maurice Evans – Edward Hutchins (Hutch)
Ralph Bellamy – Dr. Abraham Sapirsten
Patsy Kelly – Laura-Loise McBirney
Victoria Vetri – Terry
País de Origem:
Estados Unidos
Gênero:
Drama, Horror
Direção:
Roman Polanski
Design Produção:
Richard Sylbert
Música Original:
Krzysztof Komeda
Fotografia:
William A. Fraker
Edição:
Sam O’Steen, Bob Wyman
Direção de Arte:
Joel Schiller
Figurino:
Anthea Sylbert
Guarda-Roupa:
Joan Joseff
Maquiagem:
Allan Snyder
Efeitos Sonoros:
Harold Lewis
Efeitos Visuais:
Farciot Edouart
Lançamento:
12/06/1968 (EUA)
21/05/1969 (Brasil)