“Masha e o Urso – Diversão em Dobro” só confirma: Masha é uma psicopata mirim

O filme é muito ruim; e faz questão de não esconder isso

Antônio Pedro de Souza

Chegou aos cinemas a mais nova incursão de Masha e o Urso, desenho febre entre crianças e adultos, mas que não funciona nas telonas. O longa-metragem (ou seria uma colagem mal feita de curtas-metragens para parecer um longa?) não diz a que veio e faz o espectador de bobo em vários sentidos. Mas, vamos lá, tentar destrinchar passo a passo essa “obra” cinematográfica.

Certa vez, durante uma transmissão do Oscar, o saudoso José Wilker disse sentir saudade daqueles desenhos animados clássicos, em que os personagens realmente se pareciam com personagens de desenho, em vez dos elaboradíssimos traços da atualidade. De certo modo, Wilker questionava que, com tanta modernidade e tecnologia envolvidas nos desenhos atuais, uma parte substancial dos desenhos havia se perdido: a boa história. E, sim, ele estava certo. Saltamos no tempo para 2019 quando a mega produção da Disney estreou: Estamos falando de O Rei Leão, que evocava as memórias infantis – e até mesmo adultas – de muito gente que viu a animação clássica de 1994. Passados 25 anos entre as duas produções, ficou notório na tela de que a tecnologia foi aprimorada de todas as formas possíveis, seja nos traços dos personagens, seja na animação em si, mas faltava algo que só existia na animação de 1994: o carisma dos personagens e de seus respectivos dubladores. A versão de 2019 é visualmente bonita, tecnologicamente imponente, amplia – para deleite dos olhos – algumas cenas, mas narrativamente é fraca, mesmo recontando praticamente cena a cena o filme de 1994.

Façamos outra viagem no tempo e chegaremos ao recém-lançado Masha e o Urso – Diversão em dobro. O filme resgata os personagens-títulos, conhecidos por suas inúmeras mini-aventuras que são realmente divertidas, apesar do viés psicótico da garotinha protagonista. Mas, falemos sério: Não dá pra julgar Masha por ela ser uma pestinha, afinal, a fórmula clássica dos desenhos animados – e das histórias em quadrinhos, diga-se de passagem, é essa: um personagem muito arteiro, que inferniza outro personagem que, constantemente, está à beira de um colapso nervoso.

Basta lembrarmos de personagens icônicos como Pica-Pau, Pernalonga, Tom & Jerry e os brasileiros Cebolinha (Turma da Mônica) e Emília (Sítio do Picapau Amarelo): todos eles, em menor ou maior grau, têm um certo nível de loucura psicótica que nos faz rolar de rir e até sentir dó de seus oponentes, embora sempre desejamos mais daquela dose de loucura. Quantos de nós não desejou que o Cebolinha, finalmente, se tornasse o “lei” da “lua”? Ou vibrasse ao ver o Pernalonga infernizar o Hortelino? Ou ainda sentisse um prazer genuíno ao ver o Pica-Pau boicotando o Leôncio, Zé Jacaré, Zeca Urubu ou Minnie Ranheta? Enfim, analisando em retrospecto, esses personagens têm algo em comum para suas práticas vistas como “nefastas”: Eles têm uma motivação. Certo, Pica-Pau e Pernalonga são umas pestes, mas eles, em geral, só entram numa briga após serem provocados: “Você sabe que isso quer dizer guerra, não é mesmo?” é uma expressão comumente usada por ambos quando são achincalhados por seus inimigos.

E aí entra a grande diferença entre esses personagens clássicos e a Masha: Qual é a motivação da menina? Nenhum roteirista pareceu disposto a explicar os motivos que levam Masha a atazanar o pobre Urso, seja nos curtas ou neste falso longa (já, já eu explico o meu motivo de chamá-lo de “falso longa”). Enfim: a menina aparece, tira o sossego do Urso, causando-lhe inúmeros problemas; finge consertar esses problemas (quando, na verdade, ela provoca mais desordem) e vai embora. Sério: tudo soa muito gratuito, mesmo para um desenho destinado a crianças em idade pré-escolar. Pode-se argumentar em favor da produção que ela ensina o valor da amizade e do companheirismo e blablablá, mas a verdade é que se as ações de Masha já soavam forçadas nos desenhos curtinhos, isso só foi amplificado na versão para cinema. A história é fraca mesmo.

Bem, passemos então à análise do filme: no parágrafo anterior eu disse que a história era fraca. Não é bem verdade. Isso porque não há uma história no filme. Apenas um amontoado de situações que saem do nada e levam a lugar nenhum. Pra começar, o longa é composto por vários esquetes protagonizados pelos personagens-título. Daí eu nomeá-lo de “falso longa-metragem”, já que não há uma única história com o clássico “começo, meio e fim” em noventa minutos de projeção.

Opa! O leitor e fã da Masha deve estar se perguntando: “Mas se isso é um problema para longa-metragens, então várias produções deveriam ser linchadas como o Antônio Pedro está fazendo com o filme da garotinha malvada e do Urso bobalhão.

Estão certos, nobres leitores, existem inúmeras produções, de variados gêneros cinematográficos, que utilizam esse artifício de juntar duas ou três pequenas e boas histórias que ocorrem em universos diferentes e lançá-las como um único filme. Essa prática é recorrente, mas quem a utiliza sabe o caminho que está pavimentando e dá um norte ao seu filme. Vejamos alguns exemplos bem sucedidos deste tipo de processo:

Vamos começar por Trilogia do Terror, de 1975, lançado no Brasil como “Três Histórias de Terror” e depois exibido na TV aberta brasileira com o nome de “Duas Histórias de Terror” (graças à idiotice da censura federal do regime militar brasileiro). O filme exibe três histórias de terror inspiradas em contos de Richard Matheson. Embora diferentes, as histórias possuem o mesmo autor e os três segmentos são estrelados por Karen Black, ou seja, a “cola” que une os curtas transformando-os em longa.

Na década de 1980, um excelente exemplar do gênero é Olhos de Gato, inspirado em contos de Stephen King. Cada segmento traz uma história de terror. A liga, aqui, é feita pelo gato, que está presente em todos os curtas. Entre uma história e outra o bichano passeia pela cidade e se mete em apuros. Num dos momentos mais divertidos e autorreferencias da obra, o gato é perseguido por um são bernardo chamado Cujo e quase é atropelado por um Plymouth Fury 1958 vermelho e branco, cuja placa nos revela ser ninguém mais, ninguém menos que Christine… Ou seja: além dos três contos apresentados serem baseados em textos do King, esses elos entre eles também referenciam obras clássicas do autor. E, lembre-se, o gato está presente em todas as histórias. Assim, temos um legítimo longa-metragem dividido por segmentos. Uma pérola do gênero.

Na década seguinte, outra produção que ganharia o título no Brasil de Trilogia do Terror (o nome original é Body Bags (sacos de corpos)) traz três histórias diferentes, mas que também se unem num determinado ponto para serem consideradas um longa-metragem. Na trama, acompanhamos um legista que, ao longo do seu trabalho noturno no necrotério, nos conta as histórias. Segundo ele, os eventos aconteceram com os cadáveres existentes nos sacos daquela sala.

Embora o elenco varie de uma história pra outra, todas começam e terminam ali, no necrotério, fazendo com que todos, de certo modo, estejam entrelaçados.

E, assim, podemos citar diversos outros títulos que utilizam esse artifício. Ainda no terror, O Estranho Mundo de Zé do Caixão faz o mesmo uso de “três histórias de terror”, todas ancoradas pela criação máxima de José Mojica Marins. Saindo do terror e indo para o mundo da animação, De Férias com Timão & Pumba aproveita a boa aceitação do filme de 1994 e da série de desenhos animados feita para a TV para levar o suricato e o javali mais amados do cinema a estrelarem seu próprio longa. Na trama, Timão e Pumba curtem um dia pacato, quando o tempo fecha e um raio acerta Pumba na cabeça, fazendo-o perder a memória. Timão, então, passa a contar para o amigo as diversas viagens que os dois fizeram, a fim de fazê-lo recobrar a memória. A cada nova história, entra um desenho diferente mostrando as aventuras dos dois. Ao fim do episódio, voltamos para a “sessão de terapia”, com Timão ajudando Pumba a se recuperar. O fim do filme é hilário, digno das confusões e trapalhadas da dupla.

Outra animação que se saiu bem neste quesito foi CineGibi, da Turma da Mônica. No filme, os amigos Mônica, Magali, Cebolinha e Cascão vão ao cinema conferir a nova invenção do Franjinha: uma máquina que transforma histórias em quadrinhos em desenhos animados. Todos os episódios mostrados no filme são inspirados em historinhas publicadas ao longo das décadas nas revistinhas da Turma. Entre um desenho e outro, voltamos a acompanhar os amigos vivendo aventuras na sala de projeção e nos corredores do cinema. O filme ainda traz participações especiais de pessoas de carne e osso como o próprio Maurício de Sousa, a dupla Pedro e Thiago, Wanessa Camargo e Luciano Huck.

Ou seja: Não há problema em você ter um amontoado de historinhas, editá-las lado a lado e chamá-las de longa-metragem. O problema é você fazer isso de forma convincente, ou seja, que passe ao espectador a ideia de unidade. E é nesse ponto que “Masha e o Urso – Diversão em Dobro” falha miseravelmente.

Pra começar, a história se apresenta num palco – o qual nunca sabemos se se trata de um cinema, dada a premissa do filme; ou um teatro, dado o desenrolar da trama. Ali, Masha diz ao público que as histórias que serão vistas têm em comum o sonho e a busca por um objetivo. Sim: o objetivo era fazer um filme legal, o que os produtores não conseguiram.

Ela, então, diz que a primeira história vai começar. A tela escurece, vemos a floresta e o Urso está planejando construir um belo barco para sair velejando por aí. Mas falta ao bicho o principal: dinheiro! Este é um momento genuinamente engraçado da história: o Urso quebra diversos porquinhos-cofre para catar míseras moedinhas. Ele tem cofres guardados por toda a casa: na geladeira, no forno, no aquário. Um porquinho de verdade que acompanha Masha fica apreensivo ao vê-lo martelando os cofres e chama os médicos: dois lobos bem insanos que trarão alguns momentos bem divertidos para um filme que não é nada divertido.

Masha, então, dá a ideia de que ela e o Urso saiam procurando emprego, para que ele consiga o dinheiro do barco. Eles vão de bicicleta até a cidade e o Urso consegue o emprego de fotógrafo em um casamento triplo. Até aí, a história flui bem. O problema, claro, é que com a psicopatia mirim de Masha, o Urso logo se vê em apuros. Ele e os três casais de noivos que vão se suceder nas cerimônias.

Num dos pontos mais sem sentido do enredo, Masha picota várias notas de dinheiro que os noivos haviam recebido de presente. A cena existe para que o Urso perca parte do seu pagamento repondo o dinheiro, mas levanta uma questão de lógica sobre o desenho: Masha sabe o que significa dinheiro. Foi dela, a ideia de sair para procurar trabalho. Então, porque diabos a garotinha picotou as notas de papel? A única explicação é de que ela é mesmo uma psicopata mirim.

Passado por esse perrengue, o Urso está, novamente, sem grana e volta para casa acompanhado da pestinha. Lá, ela garante a ele que vai conseguir ajudá-lo a ter o barco. O telefone toca e alguém está procurando por um chef de cozinha. Masha garante que o Urso é o melhor chefe da região e sai com o amigo rumo ao novo emprego. Fim do primeiro ato.

Bem… De acordo com Masha, no começo do filme, o “longa” iria tratar de sonhos. O principal deles, como vimos até aqui, é o barco que o Urso almeja. Não deu certo no casamento, mas a deixa no fim do primeiro ato indica que Masha e o Urso vão se meter a cozinheiros, certo? É o que todos esperávamos e é o que teria feito do filme um verdadeiro longa, ainda que divido em segmentos. Mas aí entra o ápice da falta de continuidade e ligação da história: temos uma mini-inserção da Masha e do Urso no palco do cinema/teatro, com ela procurando um pombo que está bem perto e, então, começamos a segunda história que não tem conexão nenhuma com a primeira, não fala mais nada do “chef de cozinha” e, sequer, cita o barco do Urso. E é isso: a partir daí, o filme se desenrola até o fim por um compilado de historinhas que não têm nada a ver uma com a outra, exceto o fato de serem estreladas por Masha e o Urso. Entre um desenho e outro, voltamos ao cenário do palco do cinema/teatro apenas para que a garotinha e o bichão apareçam por trinta segundos, mas sem conexão nenhuma com as histórias apresentadas.

Em suma, esse compilado de curtas-metragens não passa de uma tentativa de forçar a barra ao tentar criar um longa-metragem, mas que, como dito anteriormente, sai do nada e vai a lugar nenhum. A tal “busca pelo sonho” se resume à primeira história e só. Não há contexto, não há ligação, não há unidade no filme em si.

O humor também não é o forte da produção. Poucas são as cenas verdadeiramente engraçadas. Entre elas, a já citada sequência dos porquinhos e outro momento em que as abelhas, depois de comerem chocolate, precisam se exercitar para voltar a voar. Entre os personagens coadjuvantes, vale destacar os dois lobos, geralmente vistos em uma velha ambulância. Os dois são boas peças de humor à la Scrat, de A Era do Gelo.

O último segmento, ambientado no Natal, é sofrível, embora seja mais longo que os demais – tem uma duração aproximada ao primeiro, do casamento. A historinha gira em torno dos preparativos para o Natal, mas aí coube uma falha à distribuidora brasileira, Paris Filmes, em lançar o filme em plena semana de carnaval: Numa boa, se esse lançamento tivesse ocorrido em dezembro, seria mais plausível.

No fim, seja nos erros do lançamento brasileiro, seja nos erros da produção russa, Masha e o Urso: Diversão em dobro é um filme fraco, com roteiro capenga, piadas ruins e apenas a constatação de que os atos da protagonista não possuem lógica nenhuma: ela está lá apenas para espalhar o caos sem necessidade. Não é divertido nem como unidade, muito menos “em dobro”, como sugere o título… Sorte que ele tem “apenas” uma hora de dezessete minutos de duração. Fosse mais longo, teria sido ainda mais enfadonho.

***

Cotação por ossos:

2,0

(apenas por causa dos lobos e dos cofrinhos)

3 comentários em ““Masha e o Urso – Diversão em Dobro” só confirma: Masha é uma psicopata mirim

  1. Vale lembrar que antes do Estranho Mundo de Zé do Caixão, o proprio Mojica fez um filme chamado Trilogia de Terror, com um episodio dirigido por ele, um pelo Ozualdo Candeias e um pelo Luis Sergio Person.

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