Partindo de um roteiro simples, Klaus Härö cria uma obra contundente, tratando o envelhecimento de forma realista e sem desculpas
Pérola Krissia
Olavi (Heikki Nousiainen) é um negociante de arte de 72 anos. Com a rotina entre leilões e a galeria de arte, sua vida é tranquila e por vezes apática. Ele está no triste fim de vida e de sua carreira, após anos de total dedicação, maior do que a com sua família, ele se encontra sem tempo. Hoje trabalha para sobreviver. Com a era digital, vendas online e a economia em declínio, os poucos colecionadores de arte, ainda vivos, estão barganhando em suas aquisições. Precisando de novidades para sua galeria para atrair o novo público, ele parece não se importar. Entende que o seu mundo e o seu amor pela arte são coisas do passado. O estudo das técnicas, os significados das cores, como a pintura sobre a tela o faz sentir que tudo que o resta agora, mesmo que relutante, é se aposentar.
Em meio a boletos atrasados e refeições solitárias, Olavi ainda procura por seu melhor lance, a pintura que será sua última grande jogada para encerrar a vida no mundo da arte com chave de ouro. A única coisa de que tem medo é o tempo. Em uma tarde recebe a visita inesperada de sua filha Lea (Pirjo Lonka), que há anos não via. O relacionamento deles é distante e até hostil. Lea, não passa de uma voz ignorada na secretária eletrônica. Ela está precisando de ajuda e como última alternativa pensou em seu pai. Seu filho Otto (Amos Brotherus), de 15 anos, precisa de um estágio para comprovar bom comportamento, como punição por um furto cometido. A avalição do estágio entrará para seu histórico, permitindo que ele possa ingressar em uma faculdade no futuro. Para Olavi esta é uma ideia estapafúrdia, não tinha tempo para esses assuntos. Lea contundente, em uma conversa franca, demonstra toda sua mágoa e rancor pelo descaso de seu pai, que acaba cedendo e contratando o garoto.
Otto entra na vida de Olavi ao mesmo tempo que uma misteriosa pintura. Esta, será leiloada em poucos dias. A pintura, o rosto de um homem, iluminado e de olhar direto, não está assinada. Em todo o seu conhecimento, acredita que é um quadro de Ilya Repin, um pintor e escultor russo. Um dos mais importantes pintores do realismo russo. Suas obras continham uma grande profundidade psicológica e exibiam as tensões da ordem social. Talvez por descuido ou descaso, a obra não ganhou a atenção devida da organização do leilão e por isso Olavi precisa de provas para poder decidir se vale a pena ou não arremata-lá. Ele contará com a ajuda de Otto nesta busca. Esse poderá ser o seu último lance.
Partindo de um roteiro simples e externamente competente de Anna Heinämaa, que coloca o fim da vida e a procura por um grande feito no mesmo patamar de complexidade, Klaus Härö cria uma obra contundente, tratando o envelhecimento de forma realista e sem desculpas. Olavi precisa deixar o seu nome gravado, neste mercado obsoleto e a confirmação de um quadro até então desconhecido trará isso. O conflito central é bem sustentado e o clima de suspense é pontual. Seria mesmo um quadro de Ilya Repin? E se sim, como reagiria a casa de leilão?
A sub-trama, o mau relacionamento entre pai e filha é apresentado de forma inteligente em meio à conversas e a lembranças. Olavi percebe assim, o quanto foi cruel ao isolar-se e perder parte da vida de sua filha quando ela mais precisava e como isso prejudicou seu próprio crescimento pessoal. Em todos os encontros de Olavi e Lea são claramente indivíduos que compartilharam um passado, mas que jamais terão um futuro juntos. Já o relacionamento de Olavi e Otto é o oposto, é o descobrimento de algo em comum, há um crescente entendimento, há troca de aprendizado. Nas próprias palavras de Olavi, enquanto descreve para o neto uma pintura de um velho e uma criança: “Para um, a vida é o futuro, para o outro, o passado”. Eles vão se compreendendo e se completando. É uma cena lindíssima.
A cumplicidade entre os atores deixa tudo mais fluido. Nousiainen, com sua voz cavernosa, fisionomia carrancuda e temperamento irritadiço, expressa todo o cansaço e fragilidade de Olavi fisicamente. Na forma de respirar e se mover. Brotherus dá luz ao típico adolescente rebelde. É inquieto e imprevisível, corre atrás do que acredita, não se conforma facilmente, nem com a situação financeira de sua mãe, nem com a rigidez de seu avô. Os dois se desafiam.
Com elementos que já conhecemos, percebemos ali uma história que já vimos. A grande direção de Härö, faz toda a diferença. A estética empregada, em iluminação fria e direcionada contam a história, sem necessitar de palavras. A movimentação lenta de câmara e o uso do plano aberto e contra-plongée, dão ares de pintura sobre a tela. O uso do ambiente, como a galeria quase abandonada e escura de Olavi em contraponto aos modernos e valorizados conglomerados ajudam a narrativa do velho contra o novo e da perda de espaço.
O último lance é uma obra com camadas e que dialoga bem com o espectador sobre o sentimentalismo do legado. E a importância do que o que deixamos para trás pode se tornar o futuro para outros.
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4/5
O Último Lance (Tuntematon mestari – One last deal, 2018)
Direção: Klaus Härö
Elenco: Heikki Nousiainen, Amos Brotherus, Pirjo Lonka
Confira abaixo a galeria de fotos do filme: