“Quando O Céu Se Engana” subverte idealismo capriano, investigando até onde o dinheiro traz felicidade

Raphael Lages

Em “Quando o Céu Se Engana” (Good Fortune, 2025), longa de estreia do comediante Aziz Ansari como diretor, o anjo Gabriel (Keanu Reeves) tenta ajudar Arj (Aziz Ansari), um documentarista aspirante que tenta segurar as pontas fazendo trabalhos de aplicativo, a ser mais grato por sua vida, mostrando que o dinheiro não a solução ao o trocar de vida com o milionário Jeff (Seth Rogen). O tiro saí pela culatra pois o dinheiro realmente resolve a maioria dos problemas de Arj.

Partindo de uma premissa que remete essa tradição clássica de comédias dramáticas americanas de Frank Capra (Felicidade Não Se Compra, Aconteceu Naquela Noite), desse otimismo mágico, Ansari busca a subversão cômica para expressar insatisfações políticas com o idealismo e individualismo desse discurso, que esses trabalhos parecem carregar. “Quando o Céu Se Engana” usa do elemento fantástico, de anjos concedendo desejos, para revelar a farsa desse moralismo raso que reforça a desigualdade. Ao trocar Arj e Jeff de lugar, Gabriel descobre que o dinheiro pode não trazer felicidade em si só, mas definitivamente ajuda.

A comédia de Aziz Ansari sempre vem de um lugar muito político e insatisfeito, mas consegue balancear bem com os prazeres do gênero que aborda. Isso é para se dizer, que é um filme que não pesa a mão com seus temas relevantes, nunca cruzando a linha de soar auto-importante. E é um filme que vai se colocando em becos onde a única saída seria razoavelmente radical politicamente, lugares que um filme americano nunca teriam coragem de ir. E, por mais que o filme não chega nas soluções mais interessantes, consegue fugir de um conformismo genérico a partir de como usa da fantasia para manter um final otimista mas evidenciar um pouco da própria impossibilidade. Evitando spoilers, as escolhas que o milionário de Jeff toma no final só são habilitadas pela experiência que a fantasia do filme permitiu o personagem viver. É um final que consegue manter algum grau de idealismo, mas busca evidenciar ele.

Ansari até faz um ótimo trabalho em aprofundar em como o capital rege a vida desses personagens. Jeff só é quem é pela forma como sua riqueza molda sua personalidade e, ao inverter os papeis, Arj também é um personagem que não perde seu centro mas tem toda a percepção e estrutura social ao redor dele revirada de cabeça para baixo. Os privilégios econômicos se tornam sociais. E, se a identidade de alguém é ditada pela forma como percebemos ela, Arj é outra pessoa. Algo que não é incompatível com quem ele vinha sendo até ali, mas que re-enquadra a forma como ele se relaciona com essas pessoas.

Mas o curioso, é que até o anjo Gabriel de Keanu Reeves busca uma ascensão social da hierarquia de trabalho. Ele começa como um anjo cuja a responsabilidade principal é salvar pessoas de dirigir e mexer no celular. E, ao ver o sucesso dos outros anjos ao seu redor, quer salvar vidas de formas mais impactantes e ganhar asas maiores. É um personagem que também tem uma visão idealizada e indiferente da humanidade sendo chacoalhada, coisa que a performance mais travada do Keanu é perfeita para o absurdo cômico.

E isso é o que realmente faz “Quando O Céu Se Engana” funcionar. Tem poucas piadas do Ansari que não registram aqui. Por mais que muito parece ter saído direto de um stand-up, elas são muito bem localizadas dramaticamente e entregam uma dor particular de cada personagem muito relacionável e tátil. É uma narrativa que existe numa circunstância extraordinária, mas todo o humor é de observações cotidianas.

Nesse sentido, os três atores centrais do longa acabam sendo a chave para que o filme funcione. Nenhum dos três foge do estereótipo conhecido deles. O Seth Rogen interpreta um maconheiro irresponsável, mas com a virada de dessa ver ser um milionário (algo que é até bem utilizado para lidar com essa geração de CEOs garotos imaturos). O personagem do Ansari não está nada longe do Dev de “Master of None” (2015-2021). E Keanu faz o bobão estoico. Mas é exatamente porque o Ansari entende que é preciso ir de encontro ao type-cast para extrair o carisma e elemento hang-out que essas figuras possuem de forma inerente. É uma pena que o Aziz Ansari seja tão convencional na direção do projeto. Me parece um filme que quer se encaixar num lançamento comercial fácil, então precisa sacrificar muito das suas idiossincrasias. A cada temporada de “Master of None”, Ansari parecia amadurecer como cineasta e sempre foi muito interessado com a forma e estrutura dos episódios. O espaço serializado dava mais espaço para ele experimentar, mas aqui muitas vezes parece um filme achatado pela sua padronização e até, por vezes, incompetente como cinema. Seja tomando saídas mais inexpressivas como linhas expositivas mais fáceis ou planos pouco inventivos, é claro que o Ansari estava um pouco paralisado com a perspectiva de errar no longa teatral. Dito isso, através desses erros, é evidente a visão do Aziz para imagem e tom em “Quando O Céu Se Engana”.

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