“A Vida de Chuck” é um melodrama sincero e grandioso, porém raso e de pouco recurso

Raphael Lages

Como cineasta de terror, Mike Flanagan (“A Maldição da Casa Hill”, “Doutor Sono”) sempre foi dos mais emotivos. O terror, para ele, funcionava como um mote fantástico para trazer urgência aos dramas dos personagens, seus monstros despertavam as tentações e demônios internos dos protagonistas, mas nunca eram símbolos de tal. Eram apenas catalisadores, o que fazia de todas as cenas muito mais potentes. Para Flanagan, falar sobre um assunto é de fato encená-lo em frente aos personagens e forçá-los a confrontar isso em cena. 

Então, sua adaptação do conto melodramático de Stephen King “A Vida de Chuck”, não vem como surpresa e me parece muito apropriado. Também um gênero sobre escrachar em cena as emoções dos personagens, também um trabalho que lida com o mórbido a partir do fantástico. Aqui, com a morte em si de forma muito direta. É difícil dizer uma sinopse sem que entregue muito da jogada inicial do longa, mas é seguro dizer que é um filme sobre fins. No caso aqui, o longa começa com o fim do mundo iminente e o ex-casal Felicia (Karen Gillan) e Marty (Chiwetel Ejiofor) percebendo que morreriam sozinhos, iniciando uma reconexão. 

Nesse trecho inicial do longa existe uma busca pela poesia do fim do mundo. Flanagan sabe transformar os elementos mais surreais da prosa do King em imagens emotivas – um homem, sem desviar o olhar para frente, deixa sua maleta cair no chão e segue em frente; uma menina andando de patins aparece na escuridão da noite dos subúrbios americanos; uma propaganda que não parece anunciar nada toma as televisões e outdoors dizendo “Obrigado, Chuck!”. Alguns desses elementos vêm como forma de suscitar mistério e curiosidade, mas Flanagan sabe extrair a sensibilidade deles. São momentos que partem de uma desconexão com o mundo real, uma quebra da rotina e do esperado, que se manifestam em visões surreais. 

Mike Flanagan nunca foi um cineasta sutil e não é aqui que gostaria que ele começasse a ser. É um trabalho sobre finais, então pode apostar que ele começa com um cartão anunciando “Terceiro Ato” e vai abordar diretamente o fim do mundo. Nesse primeiro momento, onde o diretor consegue usar do fantástico para fazer com que os dramas reprimidos dos personagens se revelem, o longa funciona bem. É um trabalho bem verbal, conta com extensos monólogos divagando sobre seus temas, com direito a jogadas de palavras e citações de Walt Whitman. O primeiro deles – que Marty faz a Felicia ao telefone, citando Carl Sagan e dizendo que a humanidade existiu apenas no último segundo, do último dia do calendário relativo ao universo – é bem bonito. É um momento em que os dois personagens estão distantes, podendo cada um navegar pelo espaço de sua própria casa e encontrar um jeito em cena de manifestar a falta um do outro, fora transformar o verbo em imagens. A condição do universo que o Flanagan estabelece, faz com que o momento ganhe potência.

Esse é o primeiro de muitos monólogos do gênero. Diversos citando os mesmos autores inclusive, sem ter algum insight brilhante – ou um insight qualquer – sobre os textos no caminho. É basicamente a citação vivendo por si própria ali. O primeiro já é um tanto cafona, coisa que me agrada, mas sinceridade não gera beleza por si só. O trabalho fica remoendo as próprias ideias de forma a esvaziá-las e fazer com que até suas observações mais profundas pareçam uma frase que você leria em um adesivo de geladeira.  

O processo de “A Vida de Chuck” (The Life of Chuck, 2024) é simples. O filme começa com um pequeno enigma de significantes – imagens dispersas que geram um vácuo de significado, que se espera preencher ao longo do filme. Flanagan comete o erro de, de fato, preencher esse vácuo. Ele precisa destrinchar as lógicas internas do seu primeiro capítulo para fazer com que as coisas ganhem nova luz. No caminho, ele encontra boas cenas mas não muito mais que isso. É um filme que pega questões e dramas carregados e se contenta em resolvê-los em platitudes. 

O projeto é parte drama, parte ficção-científica e parte musical. Essa última rende boas cenas. Uma delas sendo o momento chave do filme, onde Chuck (Tom Hiddleston, uma presença com muita pouca magia para o que o papel dele precisa) decide dançar na rua. O momento chega após uma brincadeira de estrutura super-articulada, com uma narração prepotente e idas e vindas temporais que basicamente aniquilam a impulsividade mundana e surreal do gesto inusitado dentro do contexto cotidiano. É um momento de ruptura que é anunciado há léguas. Dito isso, ainda tem alguma magia na cena. É um momento que vibra com um gosto por si próprio, a coreografia é inspirada e o Flanagan busca todas as formas certas de capturar a emotividade dos corpos dançando. É a catarse de se libertar em dança, em abstração, que faz a tela brilhar. 

E “A Vida de Chuck” tem alguns momentos assim. Que, contra todas as chances, ainda funcionam. O problema é que é um trabalho tão açucarado, que quer em todo momento encontrar ali as respostas do universo em frases prontas e na sua postura emotiva, o que acaba esvaziando muito do que existe de interessante nas suas entrelinhas. Fora a grande cena de dança, nenhuma emoção do Flanagan vem de observar seus personagens, é um trabalho que inteiramente quer extrair sua potência através de seus artifícios narrativos e de suas ideias que, talvez por si só não sejam baratas, mas vendidas da forma que são, certamente parecem.

A verdade é que me parece um filme desconectado demais do imediato das suas emoções para conseguir com que um trabalho tão melodramático assim seja material. O que é irônico, porque no primeiro texto que escrevi sobre o Flanagan, descrevi o cinema dele como algo que vive em sua materialidade, na força das próprias cenas e não das suas ideias. Acho que o erro do diretor aqui é apostar nas ideias que, para qualquer fim, são bem pouco esclarecedoras em si. 

***

Cotação por Ossos:

4,0 de 10,0

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