“Toda Arte é, ao mesmo tempo, superfície e símbolo. Aqueles que procuram ver por baixo da superfície, fazem-no por sua conta e risco“.
(Autor, por mim, desconhecido!)
De Gilles Deleuze: “O homem foi criado à imagem e à semelhança de Deus. Logo, por meio do pecado, ele perde a semelhança, e mantém a imagem”.
Quando Deleuze aponta que filosofar é criar conceitos, de antemão tudo parece razoavelmente muito fácil – e de fato seria se Deleuze não fosse nietzscheano. Em um conceito sempre se erguerá um reflexo, um número dois que pode fazer ruir com qualquer tentativa da “filosofia do futuro” em se superar, ir além… Monstruosamente, todo conceito parece trazer imbricado seu exato oposto, reafirmando o inimigo que inutilmente era combatido. Mas
Nietzsche na sua anti-filosofia consegue mostrar que tudo ainda pode vir a ser de outra maneira ao destruir a “tradição moral”, não pelo seu exato oposto, pela imoralidade, mas por um ataque certeiro de um olhar de fora do jogo moral, um olhar amoral, sem verdades porque também não há mais mentiras.
Bom, mas em “O Exorcista”, de 1973, de William Friedkin, que “pecado” essencialmente temos aqui, ainda mais uma figura tão doce e pura como a Regan (a Linda Blair)?!?
Por que ela, justamente ela?!
O que o filme “O Exorcista” propõe é essa dinâmica de dubiedades.
O cristianismo segue esta exata cartilha: somos simulacros de Deus, e só podemos
reconquistar o nosso direito de cópia se voltarmos às semelhanças com o Pai, com o Criador, se nos aproximarmos do Mesmo, enquanto o diferente, o simulacro não cristão, o Outro, acaba por se tornar o sujo, o demoníaco. Transformar esse simulacro em semelhante, ou expulsá-lo de vez da frente
de nossos olhos é o objetivo do platonismo, por exemplo. E, também, dos rituais romanos de exorcismo. O Simulacro é distinto, estranho; justamente por isso, por seu poder de corromper, ele é tão perigoso.
“O platonismo funda assim todo o domínio que a filosofia reconhecerá como seu: o domínio da representação preenchido pelas cópias-ícones e definido não em uma relação extrínseca a um objeto, mas numa relação intrínseca ao modelo ou fundamento.” (p.264)
(…) a filosofia não deixa o elemento da representação quando parte à conquista do
infinito. Sua embriaguez é fingida. Ela persegue sempre a mesma tarefa, Iconologia
e adapta-a as exigências especulativas do Cristianismo (o infinitamente pequeno e o
infinitamente grande). E sempre a seleção dos pretendentes, a exclusão do excêntrico e do divergente, em nome de uma finalidade pretensamente superior, de uma realidade essencial ou mesmo de um sentido da história (p.265). “
Arte, por atributo de sua natureza, é um desperdício e, logo, filmes de terror são e seriam mesmo um desperdício: não possui um propósito meramente utilitarista, é uma inscrição no mundo que acontece sem necessidade objetiva de um por que nem de um para quê. O objetivo de um sacerdote exorcista supostamente é combater possessões como o que a Regan sofreu, mas até quando? E como? Logo, só iriam parar quando não houvesse mais pecados e pecadores. Como evitar todos os demônios, como controlá-los? Mas isso, na prática, seria inviável. Impossível. Por outro lado, nos demônios, a vontade nietzscheana mostra alguns dos seus maiores poderes, num sombrio convite ecoado no aparecimento infinito de mais loucos diabos e vilões e jovens corrompidos pelo Mal que há neste mundo. Não há respeito por limites ou regras, a não ser por aquelas escolhidas por si próprios, uma vez possuídos.
Na sobreposição indefinida da ordem e do caos, da inevitável contradição de “bem-humano” e de liberdade, no choque e no colapso inerentes à vontade, entre o escravo e o tirano, parte para além do bem e do mal, para além do homem.
E há um detalhe: para se tornar totem e da ordem do imagético, é necessário confrontar e converter o mundano e o material em ideias – sacras ou não. (Professor Doutor José Ricardo da Costa Miranda, Jr.)
…
Marco definitivo da história do cinema, “O Exorcista”, de William Friedkin, não à toa, é um filme tão perfeito e definidor, que mesmo não assistido, pode ser facilmente reconhecido por qualquer pessoa que tenha contato mínimo com a indústria cinematográfica e com seu imaginário. A produção, hoje, a esta altura já possui um caráter arquetípico, servindo de inspiração para diversos filmes de horror que tentam seguir seu modelo estrutural: uma criança pura, inocente, vulnerável e dócil, inicialmente muito comportada, que diante da presença de uma entidade maligna, começa a apresentar comportamento demasiado estranho, e posteriormente, é possuída, trazendo à tona pânico e horror aos mais próximos, sejam os pais, familiares e/ou amigos.
Lançado nos cinemas em 26 de dezembro de 1973, o filme “O Exorcista”, definidos de muitos clichês hoje já tão manjados, foi dirigido por William Friedkin e distribuído pela Warner Bros. O roteiro foi assinado por William Peter Blatty, autor do romance homônimo baseado em fatos reais, ocorrido nos Estados Unidos com o menino Robbie Manheim, de 14 anos, em 1949. Entre os profissionais integrantes da equipe técnica, relevantes para esta reflexão, temos Owen Roizman na direção de fotografia e Bud Smith na montagem, responsáveis por um importante grande aspecto formal maneirista explorado em um tópico mais adiante.
Mas, além da campanha de publicidade do novo filme “O Ritual”, cujo qual está sendo vendido desta maneira, sob este slogan, e pesquisei e, realmente, diz-se que o caso de possessão de Emma Schmidt (Abigail Cowen) foi super influente para “O Exorcista” enquanto história e narrativa. Para William Peter Blatty. E gozado que a História se repete: se foi história influente para “O Exorcista”, então, agora, a esta altura do campeonato, o clássico de 1973, é mais que cadeira cativa em qualquer filme de possessão posterior a ele. Todos devem a ele e, de alguma forma, “pagam pedágio a ele”, quer o diretor esteja consciente disso ou não. Mesmo que a direção não queira, a influência será inegável.
“E por que estou entrando em tais detalhes?”
Bom, tudo em cima de detalhes é questão de contexto. A título de contextualização. Afinal, um filme que já vem com o nome de Al Pacino no elenco e com um ator em ascensão, Dan Stevens, além de se vender como “a inspiração do caso de ‘O Exorcista'”, já vem com uma aposta altíssima, cheio de promessas.
Cumpre?
Diria que não fica nada aquém.
Se você queria um novo “O Exorcista”, seria impossível, sinto lhe frustrar. Primeiramente, porque não dá para desbancar clássicos definidores ou substituir o papel de “O Exorcista” no gênero, uma vez que existe facilmente o “antes” e o “depois” desta obra-prima do horror.
E diria que estou há tempos defendendo – a meu ver, quase sozinho – certos filmes do gênero no recorte de “horror de possessão”
Em 2023, defendi o subestimado “O Exorcista do Papa”, com Russell Crowe, dirigido por Julius Avery. E deste mesmo ano, ainda tivemos uma sequência de “Evil Dead”, o “terrir trash-porn”.
“O Ritual”, por incrível que pareça, por mais que recicle uma “penca” de clichês, é um filme que tenta relacionar uma tradição mais clássica dessa temática do exorcismo com uma pegada contemporânea.
Ele conserva um aspecto bem pragmático, mas tenta ser solene na caracterização dos cenários e tem uma decupagem baseada numa formalidade não tão comum em trabalhos comerciais de terror recentes (principalmente pela forma que dá uma atenção especial aos elementos da composição com a lente anamórfica e no uso dos planos fixos). Tem suas ceninhas verdadeiramente assustadoras e, para um filme desses, num gênero desgastado,
Os seus melhores momentos derivam de um choque entre essas ideias. A direção até enquadra tudo com uma certa reverência, eloquência e elegância, mas ao mesmo tempo se dá algumas liberdades na dinâmica das ações que vão para um lado quase James Wan misturado com – pasme! – Paco Plaza da coisa, principalmente no ato final.
É interessante, principalmente, como ele consegue preservar um lado gráfico “old school” (e até artificial) ao mesmo tempo que mantém a fotografia classuda. Isso poderia soar deslocado ou anacrônico de um modo ruim, mas é um filme que não tem vergonha de explorar esse lado explícito “podrão” e classudo em contraste quando pode.
Pena que explora isso pouco. Ele passa mais tempo se enrolando do que se aproveitando desse lado gráfico e desse choque de ideias. Quando explora isso, é bom, mas parece que é tudo muito cronometrado.
Fiquei com vontade de ver bem mais cenas como aquela do embate final que vai desde colocar uma representação muito concreta de uma falsa Virgem Maria aos padres lutando quqse num mano a mano com o demônio.
É um problema que parece que está mais na montagem do filme que precisa se adequar a um modelo do que na visão do David Midell. O Midell realmente parece curtir essa iconografia relativamente explícita.
E mesmo que tenha essa abordagem classuda, ele sempre mostra tudo de modo muito frontal e até consegue usar cores mais vivas (em alguns momentos), apesar de ser majoritariamente asséptico, sombrio e soturno, dentro dessa estética escura e realista de filme de terror de estúdio pós-anos 2000.
Muito bom!
Sinto que é um filme que merece nota!
Apesar de que não dá para saber se vai ficar para a História.
Isso só o tempo dirá…
Mas, para 2025, foi um filme legal!
