Crítica: Superman (2025)

Novo filme, velhas histórias

Luca Ramalho Rizzuti

Está bem, depois de aceito o desafio… de eu ter assumido a empreitada de discorrer sobre este filme ao ter topado a missão de encarar a cabine dele, achei interessante trazer para a discussão do filme esses conceitos, temas e definições (e também vou buscar contextualizar, links e fazer correlações, como um dossiê… para chegarmos a alguns pontos específicos e não perdermos de vista aspectos interessantes), o  termo camp possui uma definição bastante ampla, mas é basicamente usado para se referir a algo brega, exagerado, artificial, cartunesco e até mesmo vulgar.
Para explorar esse conceito no cinema, iremos partir do artigo “Notas sobre o Camp”, de Susan Sontag, publicado no livro “Contra a Interpretação e Outros Ensaios”. E o crítico Arthur Tuoto, ao escrever e publicar seu artigo em seu site, sobre a trilogia prequel de Star Wars também discorreu sobre o assunto.

No início de seu artigo, a Sontag define o camp como uma sensibilidade, e não tanto como um estilo. Ela descreve o camp como um modo de ver as coisas, uma forma de enxergar o mundo.
Embora o camp tenha características estilísticas próprias, Sontag o define mais como uma forma de ver as coisas do que como uma escolha estética particular. A essência do camp, segundo ela, é um gosto pelo inatural, pelo artificial, pelo exagero, pelo que não soa natural.

Essa sensibilidade pelo exagero irá se refletir em escolhas estéticas de modo distinto a depender do contexto. Para ilustrar essa ideia, Sontag faz uma lista de coisas que, segundo ela, fazem parte da sensibilidade camp.
Ela cita o abajur Tiffany, um tipo de abajur criado no final do século XIX que possui vitrais coloridos e dramáticos.
Ela também menciona a Art Nouveau, um estilo de decoração, moda e arquitetura popular no final do século XIX e início do século XX que realçava formas da natureza de modo dramático, com curvas, ornamentos e folhagens. A Art Nouveau exagerava nos detalhes e nas linhas, recusando a simetria clássica da arte acadêmica.

Sontag também cita o filme “King Kong” (1933) como uma obra camp, já que o longa não tem receio em parecer inatural ou pouco realista, possuindo até uma certa ingenuidade nesse aspecto.
Ela também menciona os quadrinhos de “Flash Gordon”, que, igualmente, possuem essa ingenuidade e um apreço pela fantasia em um tom inocente e infantil.

Uma das ideias que Sontag reforça é que o camp puro não é algo totalmente autoconsciente. As obras que ela cita não são camp porque os criadores pensaram “eu quero fazer uma obra camp” ou “quero fazer uma obra propositalmente brega”.
Essas obras possuem exageros motivados por razões distintas, mas que são sempre muito sinceras. Elas não seguem uma regra, mas sim uma sensibilidade.
É por isso que Sontag define o camp mais como uma sensibilidade do que como um estilo. É um modo de ver as coisas que, claro, resulta em escolhas de estilo, mas que se origina de uma atitude ingênua.

“King Kong” (1933) não foi produzido para ser uma obra propositalmente artificial. Ele foi feito para ser um filme que assustasse as pessoas. É um filme que acredita no seu potencial.

Acontece que o que eu e os leitores mais hardcores da literatura-raiz de quadrinhos do personagem, o que mais conhecemos é o aspecto lúdico das Action Comics (com o nascimento do Super-Homem, em 1938 – esse alienígena expatriado… essa figura dissonante e perdida da realidade, mas quer ser símbolo de esperança e fazer parte deste mundo), mas sua contraparte, que veio pela Detective Comics (daí, DC Comics), o Batman (o Homem-Morcego), criado por Bob Kane e Bill Finger… só que o que que pega?! Ele era mais hiperestilizado em sua caracterização e camp. Por mais azulão e vermelho que o Superman fosse – e com cueca por cima do traje, o eterno ícone como gag -, o Morcegão estava mais ligado às cores, ao riso, ao ridículo, à onomatopeia – vibrava a cada sock!, cada pow! e cada crash! que explodiam na tela da TV, nas saudosas reprises dos episódios da série da década de 1960, com o ator Adam West no papel. Um Batman assumidamente ridículo e piegas (afinal, um bilionário vestido de morcego e você queria o quê?!), em tons de preto e branco, como noir, com morceguinhos de papel voando ao redor numa batcaverna mais falsa do que uma nota de dólares e meio, ou dirigindo, “desembestado”, um fordeco lata-velha ao lado de um Robin grande demais para ser um “menino” prodígio – mais próximo estava, na verdade, de ser um par romântico gay, talvez. Mas que para não haver mais leituras imbecilizadas que diziam estar “pervertendo a mente dos jovens leitores coitados”, impostos pelos dogmas e doutrinas dos rigores dos códigos de censura da época. Aquele Batman era diferente: permitia-se zombar de si, mas eu jamais perdoei minha mãe por, na minha infância, comprar para mim uma fantasia do Batman que não era cinza como a roupa vestida por West, mas uma cruza patética da cor rosa com o laranja. Posava para as fotos, mas visivelmente muito contrariado por não estar infligindo algum tipo de temor: algo do puro suco de essência do Homem-Morcego. Da nata branca.
            Mas eis que chega, em 2005, o que seria o início da infame trilogia de Christopher Nolan. Iniciou-se com Batman Begins, com Christian Bale no papel. E mesmo sem ter plena consciência disso, experienciei na infância um dos principais problemas das adaptações do Batman dos quadrinhos para as telas: a obsessão pelo realismo e o afastamento do lúdico.
            Daí o interessante questionamento: como transpor dos quadrinhos, numa mídia em que a bidimensionalidade autoriza total o distanciamento do real, para o cinema, uma arte que busca simular o real, mas se propõe a se afastar do real “para não morrermos da verdade”, como diria Nietzsche – embora não seja um atributo de sua natureza e nem nunca precisou ser. Contudo, infelizmente, de umas décadas para cá, vemos em marcha um franco movimento em direção a isso, a febre coletiva fetichista da verossimilhança. Como trazer o nosso querido Morcego à luz dos estúdios de Hollywood e dos projetores?
Matt Reeves já teria começado com o filme lançado em 2022 (e com sequência já anunciada, ainda por vir).
            Logo, um ataque terrorista da al-Qaeda ao coração de NY traumatizou os Estados Unidos e chocou o mundo para sempre. E gozado que um curta-metragem de US$ 30 mil e oito minutos foram fundamentais para o surgimento da mais louvada e bem-sucedida fase de Batman nos cinemas. Realmente, deve ter sido um dos muitos efeitos do atentado de 11 de setembro de 2001, que muito se faziam ainda sentir na produção de Hollywood em 2005, que o cinema norte-americano revogasse por completo a pulsão pelo desconhecido e o desejo pela alteridade no novo milênio, e os substituísse pela fantasia do mero puritanismo militarizado porradeiro.
            Isso obviamente transpira nos filmes de super-herói feitos a partir de então e hoje ainda os domina, com raras exceções, mas o gênero já foi largo terreno para o lúdico e para o camp.
            Enquanto Christopher Nolanem sua mais recente pira e fascínio por uma estética dessaturada e asséptica – e sim, “Homem de Aço” (2013), de Zack Snyder, só é o que é porque Nolan produziu aquele filme. Tem a cara e a estética dele! – embora não menos fascinante, e que se confunde hoje com “realismo sombrio”, em prol de um torpe fenômeno contemporâneo que é se achar “realista” é sinônimo de alguma qualidade, da mesma maneira que os habitantes de Gotham experimentam o pânico provocado pelas constantes ameaças do Coringa de Heath Ledger no filme de 2008, nós vivemos o choque causado por atos de indizível brutalidade cuja natureza aparentemente aleatória apavora justamente por ser imprevisível, sejam estes o assassinato de uma criança por policiais terrivelmente despreparados, a execução de três jovens por traficantes cúmplices de autoridades, a morte de civis iraquianos por militares norte-americanos ou (no caso dos ianques/ estadunidenses) o ataque de extremistas islâmicos em pleno coração de Manhattan. Neste sentido, aliás, O Cavaleiro das Trevas ainda que de modo mais pedestre que eficiente, busca acrescentar uma discussão política velada por meio das ações de seu herói, que infringe o direito à privacidade de seus conterrâneos em sua tentativa de encontrar o vilão – e se num filme menor isto seria visto como uma estratégia inteligente, lá sensato Lucius Fox (Morgan Freeman) questiona a atitude de Batman, propondo uma discussão ética que remete diretamente às atuais políticas do governo de Bush possibilitadas pelo infame “Ato Patriótico”. André Bazin, importante crítico da História do Cinema, falara certa vez sobre um mito fundador da sétima arte. Como qualquer outro, o desejo latente humano tem sua força eternizada em um mito. O que teria, porém, desencoberto o mito pela verdade cinematográfica? O mito do cinema total, à luz de Bazin, revelaria a potência do cinema em representar a realidade frente à câmera. O cinema, ao contrário das demais artes, possui consigo o revelar do imediato e, dele, a capacidade de manipulação da realidade através da dramaticidade – o que não seria segredo para uma pessoa educadamente cinéfila.

Mas por que entrar em tais detalhes uma vez que comecei falando de camp! Ora, chegarei lá. E voltarei a amarrar.

A projetividade do cinema, permitida pelo movimento, dá à fotografia um fator fundamental nesse quesito, sua autoridade. Os elementos fotografados, comuns ao cotidiano daqueles que fruem do objeto artístico – o vento que bate nos cabelos; o som do mar ecoando ao fundo; o olhar –, entregam ao espectador o desencobrimento da verdade direta, um contato imediato com o que está à frente da câmera. Não basta, porém, revelar o imediato, mas se apropriar dessa autoridade com o fim de manipulá-lo, torná-lo dramático, verossímil. O vento nos cabelos, o barulho do mar ao fundo, o olhar… um amor incandescente. Elementos reais, mas que vibram de uma romantização da imagem, que se descolam da superficialização dos elementos imediatos e que estão presentes com muita clareza no Batman contemporâneo.
            Da mesma forma que Michel Alcoforado diz em seu podcast que “é tudo culpa da cultura”, “Não há história possível sem uma história da cultura, e não há história da cultura sem uma história da arte aberta às ressonâncias antropológicas e morfológicas das imagens” (DIDI-HUBERMAN, 2013: 89). Pois é e sempre foi político. Não se ama um personagem só pelo que ele simboliza e pelo que ele tem de poderzinho e força-bruta, mas por sua aura, por sua humanidade, por sua moral e..  mais ainda, por sua dor. A vulnerabilidade.
Clark… ou melhor, Kal-El aqui está mais vulnerável que nunca.

Vulnerável aos seus colegas super-poderosos meta-humanos da Gangue da Justiça. Vulnerável aos seus pais de criação, Johnathan e Martha Kent. Vulnerável a Lois (em todos os aspectos e sentidos) e ao medo de perdê-la. E, assim, é natural que inicialmente Superman surja como um interesse puramente profissional, levando o ocasional envolvimento amoroso entre os dois a se estabelecer numa progressão natural. (O quê? Spoiler alert? Ah, façam-me o favor.)
E vulnerável à opinião pública e… à dor de, talvez, não poder fazer parte deste mundo.

Mas me diga se não é político, um ato político, crianças clamarem por sua presença com a bandeira com o símbolo “S” da Casa El – o que Ele, sim, um semi-deus, usa em seu peito – gritando “Superman! Superman! Superman!” em meio ao conflito na Borávia com a invasão das tropas armadas para uma batalha… ou melhor, um massacre de um povo indefeso, sem possibilidades de muita defesa e sobrevivência, senão por meio de guerrilha e tentativa de luta.

Neste aspecto, “Superman” (2025), de James Gunn, reflete a bela frase de Eric Rohmer* sobre como “todo bom filme é também um documento de sua época”, e não uma resposta “anti-woke” aos movimentos e a visões rasas hegemônicas que pautam o X (antigo Twitter).

E o conflito político que Lex Luthor (Nicholas Hoult, estupendo aqui, neste papel!) e armação de caos para “incriminar” e germinar a semente do ódio contra o próprio Superman. Isso não é política?! Luthor odeia o Superman, odeia a tudo o que ele representa, quer incriminá-lo, quer matá-lo, quer destrui-lo. Para isso, quer acabar com a ideia de Superman e a tudo o que ele e esta ideia, por conseguinte, tocam.

Uma das coisas irritantes acerca dos constantes reboots produzidos por Hollywood é a necessidade que os realizadores das novas versões têm de se apropriar das franquias e dos personagens – o que se reflete na insistência em recomeçar todo o universo em vez de simplesmente continuá-lo com uma nova abordagem. Chega de histórias de origem. Já vimos e conhecemos à beça essa história. Esta ladainha. Pulemos para o que importa.

Mas é claro que, num filme intitulado “Superman”, é mesmo o responsável por viver o protagonista que se torna capaz de afundar ou salvar o projeto – e David Corenswet se revela, aqui, um herói infinitamente mais interessante e multifacetado que o inexpressivo Brandon Routh (apesar de eu até apreciar, pessoalmente, a droga da canastrice performática dele), que vestiu o uniforme azul na versão comandada por Bryan Singer em “O Retorno”. Exibindo personalidade e peso dramático, o ator é especialmente bem sucedido ao oscilar entre os momentos de confusão e de frustração do personagem e aqueles no quais, já mais maduro, surge como um ser inteligente, sereno e dotado de sabedoria natural. E não falta a ele leveza e apelo cômico, coisa que faltava ao sisudo Henry Cavill.

E até em suas politizações, Gunn é escrachado, e não alegórico, como Snyder. Ele não aposta e nem apostaria em alegorias bíblicas.
Como se não bastasse o filme de 2013, produzido por Nolan ser extenso e bem carregado, Zack Snyder em “Homem de Aço” aposta no simbolismo mais óbvio que Superman poderia despertar e que, inclusive (e justamente por isso), se encontrava presente em vários dos capítulos passados: a comparação entre Kal-El e Jesus Cristo – e, sem demonstrar qualquer sutileza, o cineasta traz o sujeito se confessando enquanto a figura de Cristo surge ao fundo, inclui a informação de que Clark tem 33 anos de idade e enfoca-o num contra-plongé no mar que o traz de braços abertos. Além disso, há o espelhamento de seu nascimento: enquanto Jesus surgiu de uma concepção imaculada em um mundo de sexo, Kal-El foi concebido através do sexo em um planeta no qual os bebês eram produzidos in vitro. Ah, bah!

Assim, depois de um tempo “O Homem de Aço” se torna quase um jogo do tipo “encontre a referência bíblica”, o que é tolo, nada original e denuncia uma insegurança temática cabulosa que até fragiliza o projeto de Snyder e de Nolan.

que diferencia o James Gunn da enorme maioria dos diretores de filmes de boneco é que ele não simplesmente se contenta em fazer carinho no fã em filmes que se bastam em fan services baratos. Ao mesmo tempo que ele curte essas nerdices, ele realmente acredita nelas e as respeita com tanta paixão quanto tem por fazer cinema. Ele tem sua sensibilidade. Lembra? “Sensibilidade”. O camp. É um dos poucos filmes recentes do gênero que pensa em composição, que sabe se utilizar da tecnologia como parte da construção de narrativa mesmo, ao mesmo tempo que é pura HQ. E o elenco aqui, como dito, é todo maravilhoso. Não somenre Corenswet e Hoult. Aliás, eu veria um stand-up do Nicholas Hoult como Lex Luthor tranquilamente, muito fácil.

Parece que o James Gunn está para a nova DC e a fomentação da cultura nerd de consumo como o Rian Johnson está para a Disney e a… fomentação da cultura nerd de consumo.

Igual Hessel já escreveu, para Mikhail Bakunin, expoente do anarquismo, a paixão para destruir é uma paixão criativa, e não é difícil entender por que “Star Wars: Os Últimos Jedi ” é um objeto estranho na relação que Hollywood e fãs mantêm hoje em dia. 

Calma, fará certo sentido! Explico.

Se você pensar que o filme começa com Luke jogando seu sabre de luz fora e termina com um moleque fazendo seu próprio sabre de cabo de vassoura – o maior atestado do poder da imaginação do fã – então essa iconoclastia com afeto do filme de Rian Johnson realmente não tem nada a ver com a forma como se consomem filmes de franquia na era da cultura de fã.

A cultura nerd-geek, desde sempre soube se aproveitar dos dois principais pilares da nerdice: a curiosidade e o colecionismo. Ora, é como se os super-heróis tivessem inventado, definido e redefinido mesmo a nerdice, e nos anos de ocaso  permaneceu no imaginário popular com seu Universo Expandido de livros, HQs e produções audiovisuais que preenchem as lacunas deixadas pelos filmes, com suas linhas de bonecos que dão importância a personagens que são pouco mais que figurantes no cinema. Se hoje o fã reivindica o direito de ser proprietário dos filmes que ama – reivindicação essa que Hollywood incentiva para manter girando seu business no turbilhão cultural do século XXI – então uma boa parcela de responsabilidade nisso recai sobre James Gunn enquanto cineasta autoral.

Um fã pode comprar um bonequinho do Superman e finigir que tem uma capa vermelha e que quer voar. Pode pedir ao CHAT GPT que gere imagens de si mesmo como Superman. Mas, como em Star Wars, lamentavelmente, o fã não usa o cabo de vassoura como um “sabre de luz” imaginário: ele compra a sua réplica.

Mas nada tem mais potência do que a imagem de guerra, numa força política gritante, como crianças gritando “Superman!” e, com esperança, pedindo por ele. Meus caros, isso é cinema! James Gunn conseguiu! De novo!

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