Um Dia Quente de Verão

Antônio Pedro de Souza

            O trânsito caótico da cidade no meio da tarde traz aos sentidos as mais contundentes percepções: o inconfundível cheiro da fumaça oriunda da queima dos combustíveis fósseis, invade as narinas. O barulho incessante das buzinas toca os ouvidos sem delicadeza, mas cria uma melodia na tarde de segunda-feira: buzinas leves, buzinas longas e, vez ou outra, sirenes ao longe.

            O sol lança seus raios fortes no ápice do verão. Eles batem no asfalto, voltam à atmosfera que, sobrecarregada pela poluição, devolve o aquecimento em cheio sobre as cabeças desprotegidas das pessoas lá embaixo.

            Está quente.

            Está barulhento.

            Gotas de suor brotam próximas aos fios de cabelo cuidadosamente penteados àquela manhã e começam a escorrer pela testa.

            O semáforo fecha e obriga o pedestre a parar no passeio, à beira da principal avenida que corta o centro da cidade.

            As gotas de suor da testa fazem coro às gotas de suor que nasceram nas costas e que agora grudam o tecido fino da camisa à pele.

            Uma nuvem solitária cruza o céu e tampa parcialmente o sol. Não dá tempo para aliviar o calor.

            O pedestre está cansado, com fome, com sede, com vontade de chegar em casa. A mochila pesa nos ombros. Uma sacola pesa na mão esquerda.

            Os carros passam pela avenida num desfile nauseabundo.

            O semáforo abre e o transeunte avança pela faixa de pedestres. No passeio oposto, um ambulante vende água.

            O pedestre passa por ele sem se deter, a despeito da sede. Cruza a praça e entre no quarteirão fechado.

            Vê uma aglomeração a frente. Várias pessoas fazem um círculo. No meio deste círculo, uma fita e alguns cones espalhados pela polícia fazem outra delimitação. Uma viatura com o giroflex ligado está parada próxima, com as portas abertas.

            Os agentes olham a cena apáticos. O pedestre vê algo no centro do círculo. Olha melhor e vê que é “alguém”. Ou, pelo menos, fora alguém.

            Na cabeça do pedestre, toda uma história se forma: a pessoa no chão, já coberta por uma lona, deve ter tentado assaltar uma das lojas do entorno, confrontado a polícia, e foi mortalmente baleado.

            Ledo engano que é desfeito ao se aproximar das pessoas do círculo. Elas comentam sobre o estranho incidente:

            – Pulou lá de cima! – E apontam para o alto de diversos prédios, que circundam o quarteirão fechado.

            O pedestre olha para cima, mas nenhum dos prédios mostra sinais confessos de ter sido o mortal trampolim para a infeliz vítima que jaz na calçada.

            Ele olha para baixo e para frente mais uma vez:

            A banca de revistas, testemunha apática da morte, vela o corpo estendido.

            Da região da cabeça, parcialmente coberta pela lona, um filete de sangue escuro e viscoso escorre calçada abaixo e começa a coagular no concreto quente do chão.

            O pedestre olha mais uma vez para o corpo semidescoberto. Os braços estão para fora da lona e começam a apresentar a estranha palidez gélida da morte. As mangas do paletó e da camisa, ainda abotoadas nos punhos, ajudam a aquecer um corpo já frio por dentro. A camisa de linho branca e o paletó cinza claro contrastam com o sangue no concreto poluído e com a atmosfera quente e sufocante.

            O pio agudo de um pássaro no galho de uma árvore próxima desperta o passante daquele transe hipnótico. As buzinas na avenida o despertam completamente para sua realidade.

            Uma mosca voa entre as demais pessoas, sobrevoa o cenário e pousa sobre o corpo.

            Aos poucos, os curiosos começam a se afastar.

            O calor está sufocante.

            A vida segue para todos.

            Para quase todos.

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