Crítica: Thunderbolts*

Excesso de personagens pode prejudicar andamento do filme, mas resultado é satisfatório

Luca Ramalho Rizzuti

Como já escrevi em outros textos – inclusive, até lancei um livro (“Epitáfios”) de coletânea de textos pessoais em que o primeiro começa… assim:… – não sei ressuscitar Lázaros, muito menos me sacrifico por toda a humanidade e morro na cruz como foi com Messias. Nem sou o Lisan al-Gaib para “apontar o caminho” e liderar um exército. 

Nem sei abrir Mares Vermelhos levantando o meu braço. Não sou, também, o Rei Midas para transformar em ouro puro tudo o que toco. Quem me dera…

Todavia, consigo colocar sentido e atemporalidades em palavras que costumam frequentar meus textos. Não sei se com isso eu faço milagres ou sou apenas um mero dublê de profeta. Sei que consigo articular suficientemente bem um texto e contextualizá-lo, lançando-o, logo, assim, ao turbilhão cultural do mundo, em sua atualidade.

Vejamos, com isso, que, direto da publicidade com as caixas de cereais nos cartazes do filme, como se torna uma piada interna dentro do próprio longa, “Thunderbolts*” não é só um retorno excelente e divertidíssimo à Marvel da boa fase, como também inicia o processo de “cura” tanto desses personagens, como, metalinguisticamente, da própria Marvel, trazendo um frescor novo ao gênero – sim, mais do que estabelecido nas últimas décadas como um gênero independente dos demais e existente por si só, mas atualmente desgastado – e ainda consegue fazer o público se importar e comprar os conflitos dos coadjuvantes que ninguém dá bola.

Com a exceção de Bucky (Sebastian Stan), todos os personagens despertavam pouco ou zero interesse e apreço dos fãs. O Soldado Invernal retorna, mais uma vez, impecável, após oito filmes e uma série (“Falcão e o Soldado Invernal”, 2021), tendo sido visto pela última vez em “Capitão América 4: Admirável Mundo Novo”, também de 2025, quando abandonou a vida de vigilante e herói para se tornar deputado do governo estadunidense.
Já a Fantasma/Ava Starr (Hannah John-Kamen), vilã principal de “Homem-Formiga e a Vespa” (2018), retorna, agora, com seus poderes de intangibilidade sob controle. Também o retorno de John Walker, o Agente  Americano (Wyatt Russell), um soldado ególatra, condecorado, que já esteve ao menos três vezes nas trincheiras em guerras, conheceu ao menos dois presidentes dos EUA, mas manchado após cometer um ato absurdo, cobrindo o escudo com sangue ao matar um inimigo a sangue frio na frente de civis, rendendo-lhe uma dispensa desonrosa.

Acontece que, ao olhar fundo para Yelena Belova (Florence Pugh, uma atriz de primeiríssima num filme que pareceria de terceira categoria!) – literalmente, a protagonista aqui – o filme acaba olhando para todos os demais Thunderbolts, dando camadas a eles e desnudando-as, na exata medida em que o filme avança. Cansada, com vazio existencial, sem propósito definido e em luto pela morte da irmã Natasha Romanoff (Scarlett Johansson) desde a última vez em que foi vista em “Gavião Arqueiro” (2021), acaba sendo um espelho para refletir sobre cada um dentro da própria equipe. Ela nunca conseguiu se reencontrar depois daquilo, da mesma forma que todos os personagens são figuras dissonantes, quebradas e perdidas.

São um bando de turrões, eles não se conectam, eles nem sequer se confiam ou se suportam. Eles não funcionam juntos, entre si, não porque são incompetentes ou por falta de habilidade, mas por uma falta absoluta de sintonia.

Do filme “Viúva Negra” (2021), três personagens retornam: o hilário Alexei Shostakov, o Guardião Vermelho (David Harbour), a Treinadora (Olga Kurylenko), que aparece descartável aqui – ao ver o filme, o leitor entenderá. E a própria Yelena. Aqui ela não só assume o protagonismo por inteiro, como é a melhor coisa do filme, de longe.

Todos são reunidos por Valentina Allegra de Fontaine (Julia Louis-Dreyfus), diretora da CIA de caráter duvidoso, uma espécie de Amanda Waller, de Esquadrão Suicida da DC, só que da Marvel. Ela recrutou Walker em “Falcão e Soldado Invernal”, abordou Yelena no túmulo da Viúva Negra em seu filme solo de 2021, após os eventos de “Vingadores Ultimato” (2019). E mostrou seu lado sombrio e ambicioso em “Pantera Negra: Wakanda Para Sempre” (2022).

Finalmente, parece que o estúdio Marvel se reencontrou e nos entregou, em pleno 2025, um filme autocontido, que não é só, como de praxe, mais um mero degrau para os próximos capítulos do gigante e ambicioso MCU. Mas a importância que fica é: como contar uma boa história por cerca de duas horas. E consegue entregar puro ouro, para um ano já cansado no gênero.

Há uma uniformidade no Universo da Marvel que, snyderismos à parte, falta aos seus primos da DC, que vão de “Constantine”a “Shazam!” ou de “Lanterna Verde”a “Mulher-Maravilha 1984″: de modo geral, não importa quem seja o diretor (Jon Favreau, Kenneth Branagh, os irmãos Russo), os filmes estrelados pelos Vingadores – em conjunto ou solo – tendem a se parecer uns com os outros tanto em estética quanto em tom. Esta abordagem tem vantagens, claro: cria uma coesão (mesmo que superficial) entre as obras e evita surpresas desagradáveis, obrigando os cineastas a pintarem dentro dos limites desenhados pelos executivos do estúdio. Por outro lado, depois de um tempo todos começam a se confundir na memória dos espectadores por sua falta de personalidade e individualidade (algo que, por exemplo, a Warner evitou ao dar mais liberdade aos artistas que contratou para comandar a série Harry Potter). Não à toa, quando vi “Guardiões da Galáxia” aos meus catorze anos, notei, assim como muitos, como o diretor James Gunn havia conseguido imprimir visão e atmosfera particulares ao projeto, mesmo que de modo mais contido – um feito que ele repete nesta sua nova versão de “O Esquadrão Suicida”, de 2021.

Do outro lado, há a Marvel, que, a grosso modo, vem fazendo os mesmos filmes há ao menos 14 anos. Vez ou outra, algo escapa do roteiro (não o do filme, o do projeto) e funciona dentro da proposta. O injustiçado “Homem de Ferro 3”, de Shane Black, é um filme, dos que mais gosto, que põe no divã todo o simbolismo dos norte-americanos como salvadores do mundo fortalecido após o traumático 11 de setembro de 2001. Até mesmo alguns filmes megalomaníacos trazem ideias interessantíssimas, como o já mencionado “Vingadores: Ultimato” e seu estudo do papel dos heróis na fundação da América. Mas, no geral, são filmes genéricos, que existem apenas para manter o processo fordista em andamento e lançar o próximo duelo de bonecos.

Livre das amarras impostas brevemente pelas decisões estilísticas de Zack Snyder – que, por sua vez, parecia querer resgatar o tom sombrio da trilogia “Batman: O Cavaleiro das Trevas” (2005, 2008, 2012) comandada por Christopher Nolan -, Gunn cria aqui um trabalho que se recusa a se levar a sério mesmo que, à sua própria maneira, consiga evitar a higienização da violência tão comum no gênero, que, para garantir classificações indicativas mais leves, tende a esconder as consequências da destruição que invariavelmente ocorre em suas tramas.
Os Thunderbolts é um grupo de super-heróis  da Marvel Comics, formado originalmente pelo Barão Zemo, com os super-vilões conhecidos como Mestres do Terror, ao resolverem se passar por um grupo de super-heróis quando Os Vingadores e outros heróis desapareceram, após a saga Massacre.
Assim, em 2025, a Marvel se contextualiza e lança seu “Esquadrão Suicida” versão C, com este  “Thunderbolts*”, que justapõe leveza e violência gráfica, humor e pathos, de forma eficaz, autoconsciente de si e brincando com uma paleta bem mais viva que a dessaturação comum da prima DC.

O resultado é uma delicinha que merece muito ser prestigiada!

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Curiosidade: O asterisco no título não tem nenhum significado oculto que mereça uma nota de rodapé. Pelo menos nenhum que tenha sido divulgado pelo estúdio…

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