A persistência das correntes invisíveis
Em Sobreviventes, seu último trabalho antes de falecer em 2024, o cineasta português José Barahona parte de uma ideia simples, mas poderosa: o que aconteceria se os sobreviventes de um naufrágio — colonizadores e escravizados — fossem forçados a conviver em uma ilha deserta? A proposta, nascida durante uma visita do diretor a uma praia paradisíaca no litoral português, ganha forma como uma alegoria das relações raciais, da memória colonial e das feridas históricas que persistem mesmo fora dos contextos coloniais formais.
Desde os primeiros minutos, fica evidente que o filme não pretende suavizar as tensões: o grupo diverso, formado por personagens de diferentes origens e sotaques, se vê forçado a lidar com a sobrevivência física e, mais profundamente, com a difícil (re)organização social em um novo espaço. A ilha, embora inóspita, não é um terreno neutro — as estruturas de poder do passado continuam ditando as regras do jogo.
Há uma forte referência visual e temática ao clássico O Sétimo Selo (1957), de Ingmar Bergman. Barahona não esconde sua admiração pelo mestre sueco e reproduz, com precisão simbólica, cenas em que o existencialismo e a metáfora ganham o centro da narrativa. Um dos momentos mais marcantes é o diálogo entre João Salvador (vivido com intensidade por Allex Miranda) e um ex senhor de escravizados, Fradique (Miguel Damião), no qual João afirma: “São as peças brancas que sempre ganham”. A frase ressoa como um lamento histórico e uma crítica ao desequilíbrio persistente entre opressor e oprimido, mesmo quando o tabuleiro — aparentemente — mudou.
O roteiro, assinado por Barahona e José Eduardo Agualusa, ambos homens brancos, revela uma tentativa honesta, embora passível de críticas, de dar voz a personagens negros e abordar os efeitos duradouros da escravidão. Entretanto, o próprio fato de que os protagonistas negros, mesmo livres, continuam impossibilitados de alcançar paz ou autonomia total, levanta questões sobre a autoria e a representação: até que ponto é possível representar a dor do outro sem reproduzir, ainda que involuntariamente, os mesmos sistemas de exclusão?
A trilha sonora é um dos pontos altos do filme. Composta por Philippe Seabra, da banda Plebe Rude, e com colaborações de Milton Nascimento, ela guia o espectador por um percurso emocional intenso, costurando o drama com lirismo e força. A música não apenas acompanha, mas comenta a narrativa, intensificando seus momentos de tensão e melancolia.
Sobreviventes é um filme que incomoda — e essa talvez seja sua maior virtude. Barahona nos obriga a confrontar o passado colonial não como algo encerrado nos livros de história, mas como uma sombra que ainda se projeta sobre os corpos e relações do presente. A ilha, símbolo de isolamento, acaba se revelando um espelho cruel: mesmo quando tudo desmorona, as estruturas de poder parecem resistir.
Não se trata de um filme fácil ou reconfortante, mas necessário. Um testamento cinematográfico que marca com firmeza a despedida de um diretor inquieto e disposto a provocar reflexões profundas sobre identidade, memória e justiça histórica.
Ficha técnica
Sobreviventes
Brasil, Portugal | 2024 | Drama | 111 min.
Direção – José Barahona
Roteiro – José Eduardo Agualusa e José Barahona
Elenco – Hélène Vincent, Josiane Balasko, Ludivine Sagnier, Pierre Lottin, Garlan Erlos, Miguel Damião, Allex Miranda, Anabela Moreira, Roberto Bomtempo, Zia Soares, Paulo Azevedo, Ângelo Torre, Kim Ostrowskij, Hugo Narciso
Produção – David & Golias (Portugal) e Refinaria Filmes (Brasil)
Produção Executiva – Fernando Vendrell, Luís Alvarães e Carolina Dias
Fotografia – Hugo Azevedo
Direção de Arte – Ana Teresa Castelo
Figurino – Patrícia Domingues
Maquiagem e Caracterização – Magali Santana
Montagem – João Braz
Desenho de Som – Beto Ferraz
Mixagem – Armando Torres Júnior
Correção de Cor – Andreia Bertini
Efeitos Especiais – Jorge Carvalho
Distribuição no Brasil: Pandora Filmes.
