Crítica: O Contador 2

Mescla de ideias e alternância de erros e acertos nesta aguardada sequência

Luca Ramalho Rizzuti

Um dito “filme de macho” pode ser muito bem interpretado como mero resgate do ideal masculinista abalado no imaginário popular, por exemplo, por uma crise econômica que deixou muitos homens dezempregados. Ou também reacionário ao crescente poder feminino e à força da presença e superação da comunidade LGBTQIAPN+. “Rambo” (1982) e vários outros filmes estrelados por machões como Stallone, Schwarzenegger, Statham, Diesel, The Rock Johnson, Norris, Rieves surgiram no afã de restaurar o ego masculino em crise e, sobretudo, do homem ocidental como “sujeito universal”, perturbado pelo pós-guerra, pela derrota da Guerra do Vietnã (sendo os EUA o epítome simbólico e concreto disso, ao mesmo tempo), e também evitar evitar o avanço da feminização na sociedade.

No caso deste filme em específico, o Ben Affleck vive novamente Christian Wolff, um filho conturbado, ferido e traumatizado pela figura de um pai militar violento e da criação ao lado de seu irmão.
E, para acrescentar, conferem a ele o transtorno do espectro autista.

Escrevi no meu texto passado aqui para o Projeto Lumi que com a influência da estética, da forma fílmica e da direção frenética de sequências de ação – começadas por Doug Liman, mas cravadas e sacramentadas no cinema mesmo por Paul Greengrass – da franquia BOURNE (“Identidade Bourne”, “Supremacia Bourne”, “Ultimato Bourne”, “O Legado Bourne”, “Jason Bourne”… apesar de um ou outro contar com diferentes direções além do Greengrass) que depois de assistir ao seu amigo Matt Damon criar para si (depois desistir, depois retornar) uma franquia de suspense e ação, os filmes de Jason Bourne, até Ben Affleck esboçou fazer o mesmo – por sua vez, também na cadeira de produção – com “O Contador”(“The Accountant”, 2016).

Para simplificar, pegue, também, o clássico de Ron Howard “Uma Mente Brilhante” sobre a vida do grande matemático John Nash, some a essa equação os filmes da série “Desejo de Matar” com Charles Bronson, dê um toque de John Wick – só que sem cachorrinho morto e carro roubado – e a já mencionada cinessérie “Bourne” de Matt Damon. É uma trama enxuta e eficiente em sua proposta, servindo como um thriller de finanças que lentamente vai se transformando em um estudo de personagem e um filme de ação desenfreado. Para mais efeitos de exemplos, entre misturas, quase uma cria entre “Rain Man”, “Wall Street” e “John Wick”, se é que é possível uma mistura tão inusitada de fato ocorrer.
Dubuque acerta na construção de seus personagens e o universo no qual os habita, em diversos momentos trazendo a atmosfera adequada de um longa de espionagem ou um thriller político, além de uma mensagem surpreendentemente eficaz sobre tratamento de autismo. Em termos de narrativa, o longa parece perdido quanto às ações e reações da trama central, especialmente no que diz respeito à “linguagem de Wall Street” – o economiquês, por assim dizer – e os eventos incitantes que iniciam a série de matanças promovidas pelo irmão de Chris.

O resultado é um filme que se não é perfeito, ao menos entrega e cumpre muito bem o que propõe: drama, ação, umas doses de humor. Mérito do inteligente roteiro de Bill Dubuque(“O Juiz”, 2014 – é, isso mesmo, aquele filme com o Robert Downey Jr. fazendo um advogado que precisa defender seu pai, vivido por Robert Duvall, de uma acusação de assassinato premeditado) que não subestima a inteligência do espectador e da excelente direção de Gavin O’Connor, o diretor conseguiu aqui uma combinação cada vez mais rara em Hollywood. Um filme de ação que dê espaço suficiente não só para seu ator principal desenvolver um trabalho de interpretação satisfatório, como também espaço aos coadjuvantes, que já haviam dado boas pontas no primeiro filme: J.K. Simmons, Jon Bernthal, Cynthia Addai-Robinson (a mais rasa deles, infelizmente) tem momentos importantes durante o filme que demonstram o devido cuidado do diretor Gavin O’Connor e do roteirista Bill Dubuque em tratar bem seus personagens.

Gavin O’Connor tenta suprir essa isso do jeito que as continuações hollywoodianas normalmente fazem, potencializando o que deu certo no original: dobrando as apostas. Estique as cenas de ação, insira mais subtramas, mais conveniências, mais tiroteio, porradaria, matança e até com umas encheções de linguiça aqui e ali, com um reencontro entre irmãos mal-resolvidos.

Se em 2023, em “Creed III”, com Michael B. Jordan marcando sua estreia na cadeira de direção com o terceiro filme dessa nova trilogia de uma das sagas mais bem-sucedidas da História do cinema, o roteiro do filme entrega um estudo de personagens interessante numa rivalidade que tem uma dinâmica masculinista competitiva. Tudo bem, lá era o acerto de contas do passado pelo puro acerto de contas. Traumas e roupa suja lavada. O ringue de boxe – um dos esportes mais cinematográficos que existe, sem dúvida – era mais que palco para resolução de desavenças: era um divã para os dois… após a volta ao ringue de um deles depois de ter saído da prisão. E o.k., certo: os respectivos personagens de Michael B. Jordan e de Jonathan Majors não eram exatamente irmãos, mas não muito longe disso.

Já a dinâmica de Chris Wolff (“Solomon Grundy”… e suas recitações para aliviar gatilhos de sua condição de autismo severo. Síndrome de Asperger, salvo engano!)e Braxton, ou seja, Ben Affleck e Jon Bernthal (é, o Justiceiro – PUNISHER -, da Marvel) é cheia de trocas de farpas, traumas de ausência materna e o espectro rígido, brutal de um pai militar e o, mais uma vez, tão repetido abandono de um pelo outro.

Em dado momento, Braxton pergunta a Chris, de maneira até, de certa forma, cruel com ele: – “Você realmente sente falta de mim ou é só… por sua condição?”.
A resposta é um justíssimo: – “Eu sou apenas eu, como sou.”
Mas vemos os dois saírem desembestados e fugindo de caminhonete, plenos e felizes, de um bar, após uma briga por Chris ter surprerndentemente superado uma grande barreira de sua condição neurodivergente e galanteado uma moça.

Tem seus problemas de ritmo e de progressão aqui e ali e alguns exageros – que, apesar de estarem no gênero certo para eles, a construção e a inclusão destes os torna forçados demais. E a montagem também falha por vezes: suas cenas parecem dispostas em janelas do Windows, por essa montagem de slide, conveniente como o PowerPoint, e de impacto bem genérico e artificial. Cinematograficamente, um deslize crasso desse costuma ser vergonhoso.

Porém, o filme tem mais acertos do que erros. A começar por Ben Affleck, que mostra-se outra vez extremamente à vontade e bem caracterizado no papel de Christian, assumindo tiques comportamentais (o olhar sempre desviado, a mania de soprar as pontas dos dedos, a capacidade extrema de resolver qualquer questão lógica colocada em sua frente por sua rigidez cognitiva) que jamais soam caricatos ou exagerados. É até engraçado ver o físico imponente e brutamonte de Affleck dando espaço a uma performance bem controlada e pacífica, rendendo ótimos momentos com gags inusitadas, ou aquele em que, após um tiroteio sangrento, ele vira-se para uma dos personagens e se mantém extremamente calmo e frio.

Quanto a Jon Bernthal, ao menos sua ótima performance compensa e não traz consigo uma reviravolta tramática tão tola e completamente previsível envolvendo seu personagem, como no fim do primeiro filme.

Por fim, temos a direção do cada vez mais interessante Gavin O’Connor. Responsável por poucos filmes no currículo, mas surpreendendo no bom sentido cada vez mais, O’Connor traz seu conhecimento de coreografias de lutas… de confrontos corpo a corpo em uma decupagem agressiva e muito bem articulada e executada, trazendo tiroteios realistas e cenas de luta que agradam pela inventividade. Sua mise-en- scène também é muito criativa nos momentos certos de enquadrar o protagonista, especialmente ao trazer planos centralizados e quase milimétricos para as cenas em sua “casa”(?), com destaque especial para um plano que o traz através de uma minúscula janela de cozinha tipicamente estadunidense.

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