Crítica: Pecadores

Ryan Coogler explora negritude e cultura num filme dinâmico e maleável.

Raphael Lages

O Blues e o diabo andam lado a lado há um bom tempo. Um dia Robert Johnson, até então um violonista fracassado, surpreendeu seu professor Willie Brown com suas novas habilidades. Assim, surgia a lenda no boca-a-boca das cidades por todo o Delta do Mississippi: o futuro ícone do blues teria vendido a alma ao diabo em um cruzamento, num dia maldito qualquer. O demônio era figura proeminente em suas músicas, quase sempre encarnando o que havia de pior em Johnson. Algo sobrenatural assombrou essas músicas e o gênero desde então. A impressão é que “Pecadores” (2025, Sinners) se passa algumas casas ao lado de onde Johnson estaria tocando.

O diretor Ryan Coogler parte dos mitos e lendas ao redor do blues para construir seu primeiro roteiro original da carreira. Acompanhamos dois irmãos gêmeos, Fumaça e Fuligem – ambos interpretados por um Michael B. Jordan tentando opor os trejeitos dos personagens ao máximo para que sempre possamos os diferenciar – no dia de abertura de seu bar de blues. Eles alistam o garoto Sammie (o estreante Miles Caton), um talentoso violonista e cantor. A primeira metade do filme segue os irmãos se organizando em torno da estreia do bar, até que o longa vai aos poucos trocando o gênero de música para terror de cerco.

Coogler retrabalha as ideias de John Carpenter em “Príncipe das Trevas” (1987, Prince of Darkness) e “Enigma de Outro Mundo” (1982, The Thing), chegando a recriar cenas diretamente, porém nunca reduzindo a acenos ou adotando elementos estéticos referenciais. Coogler não usa nada da grife do mestre do horror, mas busca rejuvenescer o tipo de narrativa que o interessava. Assim como Carpenter se inspirava nos filmes de cerco de Howard Hawks para construir os seus, Coogler pode partir de Carpenter como inspiração, mas sempre as distorce com seu próprio estilo e construindo mundos novos em cima disso. É até difícil entender “Pecadores” como algum tipo de pastiche de Carpenter, já que o filme do Coogler parece só adotar uma série de princípios do diretor para que possa distorcer e repensá-las dentro da negritude.

Se o mal de Carpenter era minimalista e quase abstrato, o de “Pecadores” vai se definindo e entendendo melhor a cada segundo do filme. É um projeto que quer interrogar as raízes desse mal, construindo seu mistério ao redor da progressão das figuras antagonistas do longa. Enquanto os protagonistas existem como agência de sua própria cultura. O longa se passa em 1932, quando os grandes nomes do Blues já haviam surgido e inspiravam uma nova geração a fazer música. Além de que a Ku Klux Klan já se dizia um monstro do passado, mas existia dormente, rastejando pelos cantos de Mississippi. Além do racismo, que ainda era norma, aparecendo como grande ameaça a segurança e cultura da população negra. Coogler imagina o filme de cerco como um ato de resistência. Se os personagens aguentarem até o nascer do sol, se eles resistirem, essa cultura pode continuar.

O longa mescla o musical com terror de momento a momento e tem um ápice central no momento onde Sammie toca seu Blues “I Lied to You”. Coogler filma um plano-sequência – que sugere coesão temporal – distorcendo o tempo e inserindo mística ao filme. É um dos primeiros momentos onde os elementos fantásticos de fato, assumindo seus apelos como musical, pintando essa imagem da cultura negra como um processo progressivo, os guitarristas entram no Blues como se fizessem parte do gênero, depois os DJs e rappers também evidenciam que bebem da mesma fonte. Mas também como algo de nicho, constantemente precisando se preservar a partir de lutas. A performance é feita através de portas fechadas até que os estrangeiros brancos ouvem e tentam invadir, sendo repelidos pelo seu próprio tipo de magia, que agora toma forma vil.

Coogler sai da Marvel entregando um drama de época musical que é invadido pelo terror, é um trabalho que se define pela progressão imprevisível, sem precisar apelar para artifícios baratos. O longa se revitaliza pela própria força da história sempre se jogando de cabeça nos apelos de cada gênero que escolhe abordar. “Pecadores” não tem pretensões de se elevar acima do terror pois não precisa, de ter vergonha de seus números musicais ou de seus momentos mais melodramáticos, ele sabe que o melhor e mais intenso que cada gênero tem a oferecer só aparece se você se entregar a eles.

***

Cotação por Ossos:

9,0

***

Sobre o IMAX: é meio impressionante como o Coogler usa o formado e as mudanças de proporção de tela, que costumavam ser jogadas de forma quase aleatória, mas em “Pecadores” toda vez que a tela expande em IMAX e preenche a parede parece ser muito precisamente pensada para o impacto do plano que segue ou, num momento onde as barras pretas vão subindo lentamente, um anúncio do que está por vir.

Ficha Técnica:

Título: Pecadores

Título Original: Sinners

Direção: Ryan Coogler

Roteiro original: Ryan Coogler

Elenco: Michael B. Jordan, Hailee Steinfeld, Miles Caton, Wunmi Mosaku, Delroy Lindo, Jack O’Connel

Fotografia: Autumn Donald
Montagem: Michael P. Shawver

Trilha sonora original: Ludwig Göransson

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Pôster do filme gentilmente cedido por Warner Bros./Divulgação: Espaço/Z.

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