Filme estrelado por Fernanda Montenegro aborda a corrupção moral da sociedade
Antônio Pedro de Souza
O quanto estamos dispostos a sacrificar para termos um pouco de paz? Quantos de nossos direitos estamos dispostos a abrir mão para não perdermos outros tantos? Essas perguntas ecoam durante as quase duas horas de exibição de “Vitória”, filme de Andrucha Waddington, estrelado por Fernanda Montenegro.
Quando o longa-metragem começa, somos apresentados à dona Josefina fazendo compras no mercadinho do bairro. Ela tem uma rotina planejada para aquele dia. Logo, porém, a rotina é desfeita, após mais um episódio de violência em frente ao prédio em que mora. E, então, passamos a acompanhar as dores desta senhora, que luta com esforço para fazer seu dinheiro render até o fim do mês e que não recebe apoio das pessoas mais próximas.
Enquanto se prepara para receber um cliente – ela é massoterapeuta – Josefina toma um café e se assusta com um tiro, derrubando uma de suas xícaras preferidas – guardadas com todo o cuidado num armário de vidro. Logo depois, seu cliente desmarca a consulta. Ela, então, se ocupa em preparar um jantar para uma amiga, que também desmarca, já que vira pela TV que a região em que Josefina mora está em guerra entre o tráfico e a polícia.
No dia seguinte, ela tenta convencer os demais moradores do prédio a tomarem alguma atitude contra os bandidos, mas é ignorada e, pior, vira alvo de chacotas dos vizinhos. O mesmo se dá na delegacia, quando o major a ignora por completo. Josefina, então, toma uma atitude drástica: vai até uma loja de eletroeletrônicos e compra uma filmadora. A partir daí, ela passa a registrar toda a movimentação dos traficantes do bairro. É a prova que a polícia precisava para iniciar alguma ação contra os bandidos, ou pelo menos era isso que Josefina acreditava.
Mas, ao flagrar os traficantes com sua câmera, Josefina descobre mais, muito mais do que simples bandidos armados até os dentes, que comandam as bocas nas favelas do Rio de Janeiro. Ela também flagra a corrupção de uma parcela da polícia. E é aí que sua segurança passa a ser ameaçada.
“Vitória” é um filme sobre perseverança, sobre luta por direitos, mas também sobre a corrupção moral da sociedade: moradores que viram a cara para o outro lado, fingindo não ver o crime acontecendo à sua porta. Policiais que aceitam propina, liberando bandidos do flagrante de crimes hediondos. Outros policiais que contribuem com o crime desviando armas pesadas para os traficantes. É todo um esquema perigoso e intrincado, que mancha instituições e pessoas, estendendo-se para além das fronteiras do bairro que Josefina procurava defender.
Em suma, a velha moradora de uma outrora pacata rua, só queria ver restabelecida a paz que encontrara ao se abrigar naquele bairro, décadas atrás. Num dos momentos do filme, ela conta ao jornalista que, quando se mudara para aquele apartamento, havia um bosque ali na região. É como se o jardim adentrasse o prédio e as casas de todos os moradores. Era essa paz, era esse respeito, que Josefina queria alcançar e foi por isso que ela resolveu pagar um alto preço.
Quando suas fitas chegaram nas mãos certas – após rodarem e ficarem “esquecidas” numa delegacia de bairro – todo um esquema de desmando policial e acobertamento criminal veio à tona e Josefina se torna um alvo fácil. A partir daí, uma inspetora e um jornalista passam a proteger a senhora como podem, enquanto tentam convencê-la a entrar para o programa de proteção de testemunhas.
Mas não é fácil deixar sua vida, sua rotina, sua casa de uma hora para outra: toda sua história está no apartamento. Seu trabalho como massoterapeuta, seus discos, sua TV, sua câmera, sua xícara quebrada – a qual ela tenta consertar ao longo da projeção. Ela conta sua história ao repórter, de onde veio, como cresceu na vida, suas amarguras, tudo… E como aquele apartamento significa a sua identidade.
E essa é a dualidade da vida de Josefina e do filme “Vitória”: uma mulher que batalhou toda a vida para ter um lugar para descansar. Não pode descansar por causa da violência ao redor. Ao escancarar os crimes, pode conseguir um pouco de paz para seus vizinhos, mas essa paz não chegará a ela, já que terá de fugir, por sua própria segurança.
É desumano, é forte, é verdadeiro.
Para nós, como público, que ainda não nos recuperamos totalmente do impacto oferecido pela obra-prima “Ainda Estou Aqui” (Walter Salles, 2024), assistir a “Vitória”, nos faz pensar, mais uma vez, como a violência crônica, enraizada na sociedade, destrói a todos nós, todos os dias. Rouba nossa paz, tira-nos do conforto de nossos lares. Não há lugar seguro. Não há “gente de bem” para nos proteger. Estão todos corrompidos e lutar contra um sistema corrompido é uma odisseia, um martírio. Um preço muito alto a se pagar, se quisermos ter um pouco de paz.
Não precisamos nem falar sobre a atuação magistral de Fernanda Montenegro. Ela, em toda a sua sensibilidade artística, deve ser sempre reconhecida como um patrimônio cultural do Brasil, da Humanidade. Que trabalho memorável. Que artista incrível, que mulher admirável. Os demais membros do elenco também se entregam de maneira avassaladora. As cores, a trilha, o roteiro e a edição final: tudo está alinhado, aumentando a nossa experiência cinematográfica.
Inspirado numa história real, “Vitória” rasga, mais uma vez, as feridas deixadas abertas por governos insipientes e organizações criminosas arrojadas. Mas também acende um fiapo de esperança sobre pessoas que podem, em conjunto ou sozinhas, oferecer um pouco de alento para os que as cercam. Mesmo que paguem caro demais por isso…
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Curiosidades: Inicialmente chamado de “Dona Vitória”, o filme era um projeto de Breno Silveira, que faleceu no início da produção, em 2022. Breno é o diretor de “Entre Irmãs”, “2 Filhos de Francisco”, entre outros. Fernanda Montenegro já havia sido escalada na ocasião.
Andrucha Waddington, genro de Fernanda Montenegro, assumiu o projeto após a morte de Breno e dedica o filme ao amigo.
Baseado no livro “Dona Vitória da Paz”, de Fábio Gusmão. O livro foi publicado após reportagens do jornalista e investigações da polícia – que só foram possíveis, graças à câmera de dona Joana (a personagem real). Em 2024, o livro foi republicado com o título “Dona Vitória Joana da Paz”, trazendo uma foto da verdadeira Joana na capa. Na ocasião, ela já havia falecido e o filme já estava em pós-produção.
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Cotação por Ossos:
10,0

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Ficha Técnica:
Vitória
Direção: Andrucha Waddington
Roteiro: Paula Fiuza e Breno Silveira
Elenco:
Fernanda Montenegro – Josefina/Vitória (na vida real, Joana)
Laila Garin – Inspetora Laura Torres
Linn da Quebrada – Bibiana
Alan Rocha – Flávio Godoy (na vida real, Fábio Gusmão)
Thawan Lucas – Márcio
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Foto do filme gentilmente cedida por Sony/Assessoria de Imprensa do Centro Cultural Minas Tênis Clube
