Crítica: Mickey 17

Duplicatas ganham consciência em novo filme de Bong Joon Ho

Raphael Lages  

Há 5 anos, “Parasita” (기생충, 2019), o suspense de invasão domiciliar virado a ponta cabeça de Bong Joon Ho, fazia história ao se tornar o primeiro filme em língua não inglesa a vencer o grande prêmio de Hollywood, o Oscar de Melhor Filme. É pouco surpreendente (e francamente, apropriado) que a resposta do diretor sul coreano ao prêmio seja aproveitar seu cheque em branco Hollywoodiano em um filme de estúdio grande. Bong já havia feito cinema nos Estados Unidos na forma de “Snowpiercer – Expresso do Amanhã” (2013) e do híbrido “Okja” (2017), dois filmes que por mais que tendiam para o blockbuster, ainda mantinham toda a essência do cinema do Bong. E, para um cineasta que passou a carreira inteira tratando dos problemas do capitalismo, usar os meios de comunicação burgueses do país mais imperialista do planeta para difundir essa mensagem parece o ato mais revolucionário que um cineasta como ele poderia fazer.

Mickey 17” (2025) ainda lida com os temas de assinatura do autor. Adaptando o livro “Mickey7” de Edward Ashton, a narrativa do longa segue Mickey Barnes (Robert Pattinson) que se vê empregado como “dispensável” na empresa do ex-presidente Kenneth Marshall (Mark Ruffalo não disfarça a caricatura no seu Donald Trump intergaláctico). Seu trabalho consiste basicamente de morrer. Mickey é imprimido novamente logo depois de sua morte, então é perfeito para qualquer situação de risco ou teste que necessite de uma cobaia. 

            “É minha punição”, diz Mickey algumas vezes durante o filme. Acontece que morrer, não importa quantas vezes aconteça, é muito ruim. O garoto é um Sísifo espacial, eternamente condenado a morrer de novo e de novo. O negócio é que a luta em si, quando se trata de servir uma mega-empresa que te tortura diariamente, é o bastante para encher o saco de um homem.

Mickey 18, duplicata do protagonista causada por um mal-entendido quanto à morte de 17, é praticamente oposto perfeito de seu antecessor. Ambos são almas sofridas, de fato parecem personagens que morreram uma dezena de vezes. Mas 17 é uma vítima acomodada, parece sempre esconder no seu canto e conformar as autoridades, como se implorasse para não levar mais uma porrada. Enquanto 18 é raivoso e revolucionário, buscando de fato gerar mudança na espaçonave, já completamente exausto de ser explorado.

É um gesto extremo de instrumentalização humana, banalizando a morte e alma, em prol do serviço. A desumanização completa de Mickey vem em forma de personagens lidando com sua morte da mesma forma como lidam com apertar um parafuso, é apenas mais um passo para cumprir o trabalho. Não existe compaixão com a dor do outro, só executar tarefas. Ele pode ser o caso mais extremo disso, porém todas as outras figuras da nave parecem partir de seus arquétipos como funções. Os cientistas, os soldados, a segurança e etc., até que revelem humanidade por trás.

Os trabalhos americanos de Bong parecem tender mais para as caricaturas. Talvez seja uma forma do diretor satirizar também o próprio cinema americano de sua forma, trazendo uma excentricidade um pouco irônica para sua obra. Porém, o cinema do Bong está no seu melhor quando consegue firmar sua sátira a mesclando com o realismo, seja de forma mais explosiva como “Parasita” ou praticamente a deixando se dissolver em drama como em “Memórias de Um Assassino” ( 살인의 추억, 2003). Ao exagerar seus elementos em caricatura, os filmes parecem perder seu pé na realidade e, assim, a potência de seu comentário.

 “Mickey 17” é definitivamente o menos excêntrico dos três filmes em terra ianque de Bong e, talvez por isso, o melhor. Suas maiores caricaturas vêm na forma dos vilões do filme que, de fato é onde o projeto interessa menos. Mas é difícil negar alguma perspicácia no retrato de Bong desses personagens. Esse é um projeto que existe há pelo menos 3 anos e não faz mais de um mês que ouvi o Trump dizer algo como “vamos perseguir nosso destino manifesto de plantar a bandeira americana em marte”. Invocando o conceito de excepcionalismo americano do século 19, usado para justificar o assassinato de indígenas como direito divino. A frase de Trump parece ecoar perfeitamente no personagem de Mark Ruffalo em “Mickey 17”, que vê matar os alienígenas locais como um gesto político que irá reforçar seu lugar na história. É um personagem que sempre lida com tudo de forma utilitária e objetiva. Parece ver todos da nave como meios para um fim. Tal fim, sendo poder. Parece que para Bong, o cinema americano se manifesta em caricatura pois é sua única maneira de racionalizar esse país.

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Cotação por Ossos:

7,0

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Ficha Técnica:

Título: Mickey 17
Direção: Bong Joon-ho
Roteiro adaptado: Bong Joon-ho

Baseado em: “Mickey7” de Edward Ashton

Elenco: Robert Pattinson, Naomi Ackie, Steven Yeun, Toni Collette, Mark Ruffalo
Trilha sonora de: Jung Jae-il

Fotografia de: Darius Khondji
Montagem de: Yang Jin-mo

Design de produção: Fiona Crombie

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Fotos do filme gentilmente cedidas por Warner Bros. e Espaço/Z.

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