No filme, Bob Dylan é motivado pela música o tempo todo
James Mangold costuma gostar de se pautar numa pretensa sobriedade: seria, no mínimo, curioso se ele cedesse às possibilidades estéticas, narrativas e fantabulosas contagiantes que o gênero musical tem em si. Não o vejo dirigindo um filme do tipo de maneira alguma.
“Logan“, o monumental filme do Wolverine mais velho, é sóbrio e sombrio do início ao fim, apesar de chato, insosso e tedioso.
E “Ford vs Ferrari“, por sua vez, apesar de excelente, é excessivamente sóbrio e correto demais para o próprio bem. Não se permite qualquer fuga não para o não-realismo, mas um deslize, uma escapada para o não-sóbrio.
Bom, mas por que entrar em tais detalhes?
Ora, pois bem… a título de preâmbulo.
Afinal, julgando pelo marketing, este filme de Mangold parecia uma repetição do que deu certo em “Johnny & June”, filme também dirigido por ele e que contava a história de outro grande artista da música norte-americana: Johnny Cash. O filme de 2005 mostrava o relacionamento de Cash (Joaquin Phoenix) e June Carter (Reese Witherspoon), rendendo um Oscar para ela e mais quatro indicações.
A grande diferença entre as obras está na motivação dos dois protagonistas, mesmo que ambos sigam passo a passo a cartilha do sonho americano para o sucesso. A história de Cash era movida pelo amor, seja ele o do irmão que morreu, o negligenciado pelo pai e o relutante de June Carter, que preferia se manter afastada da figura de um Cash que vivia bebendo, se drogando e “longe de Deus”, como apregoa os dogmas e as doutrinas do sonho molhado estadunidense.
A história de Bob “Bobby” Dylan, um estranho músico que veio do nada, não é a história de Ritchie Valens (Lou Diamond Phillips, de “La Bamba“), descendente direto de mexicano, que ainda teve que, mais que ser bom o baatante para seu país e para outro, conseguir se provar, mas não significa que Dylan, apesar de seu prestígio que logo conseguiu e com sua infinidade de álbuns gravados, lançados e tão vendidos, não precisou comer do “pão que o próprio Diabo amassou”.
O filme encanta porque a permissividade do não-lugar – ele aparentava viver como peregrino, vindo de carona, com seu violão e sua gaitinha, num carro abarrotado, num porta-malas, do interior para tentar vida e fazer seu nome na cidade grande – parece o contexto ideal para que os personagens, especialmente o protagonista, experimente e descubra a vida sem pudor ou julgamento, protegido pelo privilégio americano.
O que me leva, não à toa, então, a Timothée Chalamet , quem recebe toda a atenção da direção e do roteiro, co-escrito por Mangold e Jay Cocks, a partir do livro de Dylan Goes Electric, de Elijah Walds. Chalamet está estonteante, brilhante, presente em tela quase o tempo todo e incorpora com precisão todos os aspectos físicos de Bob Dylan. Além de cantar como ele, com a voz fanha, até a forma de segurar um cigarro, o trabalho de Chalamet é impressionante e hipnotizante. Não por acaso, como digo, já se provou e vem se provando, cada vez mais, como um dos maiores de sua geração… muito fácil!
Agora, de todo jeito, fico animado em ver que Hollywood tem abandonado aos poucos um período casto de seu cinema. Apesar de o cinema de hoje em dia, especialmente dentro do recorte mainstream, ser tão majoritariamente careta (algo que considero ser um baita problema para a conjuntura cinematográfica atual), é específico que certas convenções têm sido deixadas de lado em prol de uma boa evolução no trato com a linguagem. Inclusive, este “Um Completo Desconhecido” dá um passo além ao oferecer um olhar interessante a um assunto onde as dinâmicas de poder na indústria musical é assunto central, sendo o ego do músico catalizador de todas elas e norteador de todas as relações à frente na narrativa da obra. Ainda assim, o que o filme grita no assunto não se confirma em seu estilo extremamente conservador e convencional. Se forma e conteúdo são parte do mesmo, aqui parecem querer se desgrudar. Não se conectam e não criam justamente, entre si, a relação quase erótica que tanto parece pedir.
Pois, sim, formalismo e conteudismo não são só uma mera simbiose, como precisam se fundir numa relação quase erótica para funcionar tão bem.
Em “Um Completo Desconhecido”, Bob Dylan é motivado pela música o tempo todo. Diferente de muitas cinebiografias, as relações humanas importam muito menos do que a arte e todos que orbitam sua vida ganham ou perdem valor dependendo do quanto isso impacta na arte. O ego é sim explorado? Claro! Mas não é motor do filme como é em “Rocketman” ou em “Bohemian Rhapsody”. Aqui é muito mais reflexo em como o personagem Dylan está para a sua arte, e ela, para ele.
É só mais um filme de Mangold em que ele falha ao compor a história ao redor do protagonista e quais conflitos vão mover o protagonista ao longo da trama. O mesmo aconteceu com Indiana Jones, em que tudo é desinteressante quando não estamos olhando para o ícone sagrado da cultura pop que é o arqueólogo-chave de Harrison Ford. E também em “Ford vs Ferrari”, um filme excelente e tecnicamente incrível, mas que nunca consegue alcançar o potencial dramático daquilo que quer contar, por um excesso de sobriedade, como já dito.
