A bela e funcional cinematografia não parece ser suficiente para “Anora”, de Sean Baker; ganhador da Palma de Ouro em Cannes no ano de 2024, o filme tem uma trama previsível e primária, desperdiçando um ótimo elenco com personagens mal desenvolvidos
O Festival de Cannes já entregou seu prêmio máximo a grandes obras do cinema mundial. “O Pagador de Promessas”, de Anselmo Duarte, foi consagrado em 1962. “Os Guarda-Chuvas do Amor”, de Jacques Demy, foi o vencedor em 1964. “Taxi Driver”, de Martin Scorsese, ganhou em 1976. “O Piano”, de Jane Campion, levou a Palma de Ouro para casa em 1993. “Parasita”, de Bong Joon-ho, em 2019. E, em 2023, foi a vez de Justine Triet ganhar a Palma por “Anatomia de uma Queda”. Claro, o festival já errou em suas decisões, premiando filmes ruins, regulares ou simplesmente não-merecedores da Palma de Ouro frente aos concorrentes. O exemplo mais recente era “Triângulo da Tristeza”, que ganhou o prêmio máximo em 2022, desbancando, por exemplo, o infinitamente superior “Close”, de Lukas Dhont. Digo que este era o exemplo mais recente porque em 2024 a Palma de Ouro foi entregue a “Anora”, de Sean Baker.
Trata-se de um filme absolutamente mediano que venceu o maior prêmio do maior festival de cinema do mundo. O júri presidido pela atriz, roteirista e diretora estadunidense Greta Gerwig preteriu longas-metragens muito melhores, como “Tipos de Gentileza”, de Yorgos Lanthimos, “A Semente do Fruto Sagrado”, de Mohammad Rasoulof, e aquele que talvez tenha se tornado o filme de 2024, e um dos melhores dos últimos anos, “A Substância”, de Coralie Fargeat. Ironicamente, três longas-metragens cujas pretensões temáticas e abordagens estéticas se mostram muito mais criativas e contundentes do que aquilo que vemos em “Anora”. Cannes escolheu sagrar uma obra estadunidense fortemente convencional e, acima de tudo, anódina.
“Anora” segue a história da personagem-título (Mikey Madison), uma jovem profissional do sexo/dançarina de boate do Brooklyn, que conhece e impulsivamente se casa com o filho mimado de um oligarca russo. Tudo parece ir bem, até que os pais de Ivan (Mark Eydelshteyn) descobrem e resolvem viajar até Nova York para forçar o filho a anular o casamento. Para quem já viu “Noites de Cabíria” (1957), fica claro desde muito cedo como a história vai terminar – o filme de Federico Fellini é uma influência declarada tanto para o diretor quanto para a atriz principal. Anora é representada ao longo do filme como uma mulher ingênua e sonhadora, que fantasia uma lua-de-mel na Disney e parece ignorar até o último minuto a estupidez e a canalhice de Ivan.
Visualmente, Sean Baker também investe o filme de uma certa aura onírica. É recorrente, por exemplo, o uso da lente grande angular, que deforma as extremidades do plano e destaca o que está no centro. Isso faz com que as cenas sempre pareçam transcorrer em um universo irreal, que na superfície é naturalista, mas cujas bordas deixam escapar a distorção de elementos fora do lugar. Anora, afinal, como Cinderela, a princípio não pertence ao ambiente opulento da família milionária, e portanto nunca perdemos de vista o fato de que a imagem que a protagonista tem de si é, tal qual as imagens do filme, muito idílica, mas obviamente fabricada. Outra indicação disso é o constante uso de flares, que tornam alguns planos do filme ainda mais ostensivamente farsescos, como na cena em que Anora e Ivan transam no sofá da mansão, ou já no fim, quando ela está esperando no aeroporto pela chegada dos pais do marido, e a luz solar irrompe através do quadro.
Este sem dúvida é um ponto a favor de Sean Baker: a habilidade, ao lado de seu diretor de fotografia, Drew Daniels, no uso das ferramentas audiovisuais para acentuar a atmosfera de conto de fadas do filme. Cores saturadas e quentes, por exemplo, além do neon, são frequentes até o fim do primeiro terço, quando, a partir da descoberta do casamento pelos pais de Ivan, a cinematografia começa a se valer mais de tonalidades frias e do inverno para dizer do arrefecimento do sonho de Anora. Outro recurso bem utilizado é o close-up, que, ao nos permitir ver os personagens de perto, cria uma noção de proximidade não apenas física, mas também psicológica, de modo que as reações e emoções comunicadas pelos rostos ganhem mais densidade.
Infelizmente, porém, o brilho e o peso da cinematografia não são capazes de fazer frente a um roteiro desbotado e insípido. A própria protagonista carece de profundidade. Sabemos que Anora tem uma irmã com quem mora, mas a relação das duas parece ser bastante irregular. A mãe da personagem mora na Flórida, com o marido, e também há um certo distanciamento emocional – nunca vemos ela conversando por telefone com a mãe ou trocando mais que dez palavras com a irmã. Sabemos apenas a idade e o local de trabalho de Anora. Essa falta de informações, entretanto, não faz da personagem enigmática ou obscura, mas apenas vazia. Se não conhecemos Anora, não conseguimos, por exemplo, antecipar suas ações, ou compreender suas atitudes, ou tentar desvendar seus sentimentos mais ocultos, o que faz com que a personalidade da personagem soe vaga e incoerente.
Por que Anora, mesmo após encontrar Ivan bêbado com uma ex-colega sua na boate, ainda acredita que ele tem algum sentimento por ela que o faça querer manter o casamento? Se Anora tem uma relação tão distanciada com sua irmã e mãe, porque ela cede à chantagem da mãe de Ivan e desiste de lutar por um divórcio vantajoso para si? A personagem parece não existir para além das movimentações que o roteiro exige dela. Saímos do filme com a sensação de que passamos mais de duas horas com alguém sobre quem nada sabemos e nada poderíamos descobrir, pois ela se restringe ao pouco que vimos. Mikey Madison é uma boa atriz, e parece estar fazendo o possível, com seu rosto expressivo e sua entrega física. Mas seu único momento de destaque é na cena final, com Igor (em uma performance contida e tocante de Yuri Borisov) – um dos capangas da família –, quando Anora finalmente demonstra alguma emoção complexa e parece começar a compreender que seu sonho nunca existiu.
A fragilidade da própria trama parece ser outro tropeço de Sean Baker. Em momento algum Ivan aparenta ter o mínimo de maturidade, e isso deixa claro para o espectador, já no início, que a relação entre ele e Anora não chegará a lugar algum. O filme termina com uma tripla frustração: já vimos esse tipo de desilusão ser feito de forma muito mais competente, a começar pelo próprio “Noites de Cabíria”; a personagem principal demora até os últimos minutos para ter uma reação frente à estupidez de Ivan e sua família, e neste momento não há mais como ela reverter a situação a seu favor; e Ivan se prova exatamente o que havíamos pensado no primeiro plano que ele aparece, ainda na boate. Sean Baker talvez tenha apostado que os acontecimentos tresloucados após a fuga de Ivan poderiam sustentar o filme, dando-lhe algum ar de novidade. Mas o arremedo de screwball comedy – com Mikey Madison gritando histericamente, ferindo involuntariamente os homens enviados pela família e vendo-os recuar de modo condescendente – é apenas cansativo e excessivo.
“Anora” é um filme que poderia ser muito mais interessante, caso se permitisse fugir de fato da obviedade e construísse seus personagens com mais nuances. A forma como o sexo é tratado pela montagem, por exemplo – sempre fugaz quando Anora está com Ivan, e muito mais terno na cena final, com Yuri –, é uma mostra de que Sean Baker (também montador do filme) entende bem as funcionalidades da linguagem cinematográfica. Isso, aliado à ótima cinematografia e às interpretações dedicadas, porém, não consegue salvar por completo uma proposta que é, em si, mediana e simplória. Tendo ou não uma Palma de Ouro, esta história de Cinderela continuaria, no fim das contas, desbotada e insípida.
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Cotação por ossos: 6,0

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Ficha Técnica:
Filme: Anora
Título Original: Anora
Ano de lançamento: 2024 (2025 no Brasil)
Direção: Sean Baker
Roteiro: Sean Baker
Outros cargos técnicos: Drew Daniels (Direção de Fotografia), Ryan Fitzgerald (Diretor de Arte), Sean Baker (Montador chefe), Stephen Phelps (Design de Produção)
Elenco: Mikey Madison (Anora), Mark Eydelshteyn (Ivan), Yura Borisov (Igor), Karren Karagulian (Toros)
Duração: 2 horas e 19 minutos
Pais produtor: Estados Unidos
Classificação Indicativa: 16 anos
Estúdios produtores: FilmNation Entertainment (Distribuição internacional), Universal Pictures do Brasil (Distribuição brasileira)
Sinopse: Em Anora, longa dirigido e escrito por Sean Baker, acompanhamos a jovem Anora (Mikey Madison), uma trabalhadora do sexo da região do Brooklyn, nos Estados Unidos. Em uma noite aparentemente normal de mais um dia de trabalho, a garota descobre que pode ter tirado a sorte grande, uma oportunidade de mudar seu destino: ela acredita ter encontrado o seu verdadeiro amor após se casar impulsivamente com o filho de um oligarca, o herdeiro russo Ivan (Mark Eidelshtein). Não demora muito para que a notícia se espalhe pela Rússia e logo o seu conto de fadas é ameaçado quando os pais de Ivan entram em cena, desaprovando totalmente o casamento. A história que ambos construíram é ameaçada e os dois decidem em comum acordo por findar o casamento. Mas será que para sempre?
