Mel Gibson faz um suspense de tensionamento de palavras com trio de atores inspirados
Em entrevista recente, Mel Gibson disse que a memória de seu pai era fotográfica. “E a minha é pornográfica”, brincou. Sendo um cineasta que sempre teve como assinatura a natureza explícita da violência que representa, a frase não surpreende e a brincadeira provavelmente tem um fundo de verdade. Sendo transcendência através da dor um tema Cristão recorrente, é fácil enxergar o apelo da violência para o diretor australiano: atravessar esse sofrimento é um meio para mitologizar uma figura. Confrontar esses personagens com as dores do mundo para que, enfim, elas possam se tornar mártires, ícones ou heróis. São filmes onde o impacto dos protagonistas existe no próprio símbolo do embate deles e cujo impacto de seus atos só começa a ressoar ao início dos créditos. Seja indo a uma guerra com um compromisso de evitar a violência ou até de forma mais evidente na figura de Jesus, que muito literalmente sofre para salvar a humanidade de seus pecados e só se torna um ícone transcendente ao morrer (e renascer) no fim do filme.
É interessante que “Ameaça no Ar” (Flight Risk, 2025) dispense as narrativas de escala epopeica para dar espaço a um suspense de câmara, trocando também a tal violência gráfica (que vem a aparecer em exatamente um plano do filme) por um trabalho de tensionamento de palavras. O longa acompanha o transporte de Winston (Topher Grace), que foi preso e irá testemunhar contra o mafioso que o empregava antes, escoltado pela segura policial Madolyn (Michelle Dockery) e o piloto traiçoeiro Daryl Booth (Mark Whalberg revelando seu lado mais sombrio).
Esse trio centraliza o filme, sendo literalmente os únicos personagens com diálogo em tela. O resto dos coadjuvantes participa apenas com a voz em tentativas periódicas dos protagonistas, sobrevoando uma nevasca, de contatar a civilização. A escolha de não cortar para esses personagens reforça o esforço do diretor de isolar nosso trio central dentro da carcaça flutuante que é o avião de carga transitando esse espaço branco e inóspito aparentemente infinito. Gibson mal corta para fora do avião e, quando o faz, é com a intenção de reforçar o quão vastas e intransitáveis são as paisagens ao redor da aeronave. Passamos a totalidade do filme dentro de um espaço fechado, limitação que faz com que o trabalho ganhe força, visto que o diretor consegue explorar tanto as instabilidades da relação e da narrativa com os movimentos do veículo aéreo, que chacoalha intensificando o drama, além de conseguir estabelecer uma relação muito forte com a geografia do pequeno avião. Objetos que aparecem ganham importância e se deslocam pelo espaço, funcionando como elementos de tensão constantemente em jogo.
Essa tensão também se manifesta em jogo verbal em “Ameaça no Ar.” É um projeto onde toda a comunicação dos protagonistas vai afetar o mundo lá fora: uma ligação de Madolyn pode fazer com que outra personagem seja presa ou morta e uma provocação de Daryl é uma abertura para que ele encontre um meio de fugir. Essa dinâmica funciona trazendo consequência e, assim, peso para os eventos do avião porém rende os momentos mais desajeitados do longa. É aí que o filme começa a tropeçar.
Voando em território desconhecido, o primeiro filme do Mel Gibson de suspense e inteiramente centrado em diálogos tem seus deslizes. Ocasionalmente a montagem e a verbalidade do projeto acabam desarmando tensão crescente ou não conseguindo de fato elaborar a força do drama. É um longa de 91 minutos que muitas vezes parece se apressar em seus tempos, chegando aquém de atingir a profundidade de seus sentimentos. O que é curioso, já que a decupagem (organização dos quadros) de Gibson parece bem precisa e pensada, com planos onde ele consegue tirar tensão de movimentos desfocados no fundo do quadro e muitas vezes elaborar momentos onde tudo de importante para cena está perfeitamente elaborada no plano, mas acaba optando por cortar para closes que embaçam a potência de quadros isolados. É um filme que parece querer encurtar o espaço entre seus silêncios com cortes, às vezes a custa do suspense.
O drama do projeto é praticamente elaborado em calculadora e não chega muito além. A personagem da Michelle Dockery (numa performance que busca vulnerabilidade em sua imponência e autoridade) perdeu alguém em serviço e precisa impedir que uma situação similar aconteça; abrimos o filme rindo da covardia do personagem do Topher Grace para que ele tenha um momento de provar sua bravura. Não vão muito além do óbvio, mas não deixam de funcionar para o projeto. Especialmente porque o Mel Gibson também é um cineasta muito emotivo, ele costumava elaborar isso em escala épica, mas agora num filme menos ambicioso, prova que sua sentimentalidade resiste.
Mas o que de fato interessa sobre isso é que, se Gibson sempre tentou buscar figuras maiores que a vida em símbolos e mártires, em “Ameaça no Ar” tudo aponta para o mundano. Para pessoas do dia a dia, em um caso policial feito para que seja encoberto, perdidas na imensidão dentro de um avião estragado e pequeno. Os personagens não viram ícones, porém não deixam de se tornar heróis a seu próprio modo. Pode-se argumentar que até os dramas “esquecíveis” dos protagonistas colaboram para essa noção de um filme que busca o mundano extraordinário, escondido em algum canto do planeta.
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Cotação por ossos: 6,0

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Ficha Técnica:
Filme: Ameaça no Ar
Título Original: Flight Risk
Ano de lançamento: 2025
Direção: Mel Gibson (Coração Valente, Paixão de Cristo, Até o Último Homem)
Roteiro original: Jared Rosenberg (estreante)
Trilha Sonora: Antonio Pinto
Outros cargos técnicos: Johnny Derango (Direção de Fotografia), David Meyer (Design de Produção)
Elenco: Michelle Dockery, Mark Whalberg, Topher Grace
Duração: 1 hora e 31 minutos
Pais produtor: Estados Unidos
Classificação Indicativa: 14 anos
Estúdios produtores: Icon Productions, Hammerstone Studios e Dave Entertainment (Produtores); Lionsgate (Distribuição Internacional), Paris Filmes (Distribuição no Brasil).
Sinopse: Uma missão importante e confidencial é comprometida por um passageiro indesejado num avião a mais de 3000 mil metros de altura. Em Ameaça no Ar, um piloto (Mark Wahlberg) é responsável por transportar Madolyn Harris (Michelle Dockery) uma profissional da Força Aérea que acompanha um depoente que estava foragido nas montanhas até seu julgamento. Ele é uma testemunha chave num caso contra uma família de mafiosos. À medida que atravessam o Alasca em pleno ar, a viagem se torna um pesadelo em altitude de cruzeiro e a tensão aumenta exponencialmente quando, aparentemente, nem todos a bordo realmente são quem dizem ser. Com os planos comprometidos e as coisas totalmente fora do controle, o avião fica no ar sem coordenadas, testando os limites dos três passageiros. Será que eles conseguirão sair vivos dessa armadilha? Será que as consequências de seus atos serão ainda mais graves quando a aeronave tocar o chão?
