“Ainda Estou Aqui”, grita silenciosamente o Brasil esquecido pelo Brasil

Fernanda Torres, em tour de force delicado, engrandece o discreto e elegante drama de Walter Salles sobre a violência da ditadura civil-militar brasileira e a resiliência de uma família golpeada pelo autoritarismo

Lucas Oliveira

            Ao assistir a “Ainda Estou Aqui”, filme de Walter Salles que vem sendo cada vez mais elogiado pela crítica, me lembrei imediatamente de outro longa-metragem que vi nesse ano de 2024: “Rainhas” (2023), coprodução da Espanha, Peru e Suíça dirigida e coescrita por Klaudia Reynicke. Ambos os filmes se valem de histórias familiares para falar sobre um contexto macrossocial. Os dois se passam durante momentos de turbulência política nacional na América Latina, e inclusive têm cenas muito semelhantes de coerção pelas forças do Estado. Tanto uma obra quanto a outra falam, de maneiras muito diferentes, sobre a ausência paterna. E as duas são as indicações de seus respectivos países (Brasil e Suíça) para disputar uma vaga na categoria de Melhor Filme Internacional no 97º Oscar, em 2025. Entretanto, embora “Rainhas” seja um belíssimo filme, falta a ele a força de “Ainda Estou Aqui”, por um motivo simples: o longa-metragem falado em espanhol não tem a grande Fernanda Torres encabeçando seu elenco.

            No filme de Walter Salles, Fernanda faz o papel de Eunice Paiva, esposa do engenheiro Rubens Paiva (Selton Mello), congressista cassado pela ditadura civil-militar brasileira e depois morto, em 1971, durante os Anos de Chumbo do regime. Baseado no livro homônimo de memórias escrito por Marcelo Rubens Paiva, filho mais novo do casal, o longa-metragem conta a rotina da família no Rio de Janeiro, em uma casa alugada de frente para a praia. Rubens, Eunice e os cinco filhos vivem relativamente bem, até que o pai da família é levado por homens do Exército para prestar um depoimento, é torturado, morto e tem o corpo ocultado. Eunice é então forçada a guiar a família em meio a este momento terrível, e acaba se tornando, no processo e ao longo das décadas, uma advogada importante na defesa dos direitos indígenas.

            O roteiro de Murilo Hauser e Heitor Lorega, premiado no 81º Festival de Veneza, onde o filme estreou mundialmente, é hábil ao estabelecer essa primeira fase da família. Vemos que Rubens é um pai atencioso e amoroso com Eunice e as crianças, e sentimos a união do grupo. Eles almoçam com os amigos, recebem juntos a carta de uma das filhas que está em Londres e dançam alegremente na sala de estar. Tal é a animação desta primeira parte que me lembrei imediatamente do encantador musical hollywoodiano “Agora Seremos Felizes” (1944), de Vincente Minnelli, também centrado em uma família feliz que passa por instabilidades ao longo da trama. No caso do filme de Walter Salles, porém, a mudança é radical, real e absolutamente traumática. Tanto que a certa idealização que se faz de Rubens, um elemento que me incomodaria, fosse o filme outro, tornou-se completamente compreensível aqui. Afinal, estamos falando da execução violenta de um resistente à ditadura. Neste caso, dramatúrgica e eticamente, o maniqueísmo me parece o único caminho possível.

Ainda nesta primeira fase do filme, Walter Salles e seu diretor de fotografia Adrian Teijido tratam de tornar estes momentos felizes muito destacados também visualmente por meio de um contraste simples – mas muito efetivo –, iluminando bastante as cenas alegres e dando preferência às externas, sob a luz do dia. Já durante a invasão à casa, os agentes repressores vão, paulatinamente, fechando portas, janelas e cortinas até que o ambiente se torne escuro e lúgubre, assim como os locais no cárcere onde Rubens, Eunice e Eliana, filha deles também levada, são interrogados e ficam presos, simbolicamente refletindo o obscurantismo em que o Brasil havia sido mergulhado e que havia chegado àquela família. A direção de fotografia se vale ainda de recursos muito clássicos, como a câmera alta, para explicitar o horror e a angústia de Eunice nos vários dias em que ela fica na prisão, investindo sempre em uma discrição formal que dá protagonismo ao drama vivido pelos personagens.

Discrição, aliás, parece ser a palavra de ordem neste filme. Por um lado, narrativamente, há uma clara recusa do roteiro e da direção de transformar o filme em um melodrama como “Central do Brasil” (1998), também de Walter Salles. Talvez por esta ser uma história trágica em si mesma, que não precisa de artifícios como uma trilha sonora grandiloquente ou cenas emocionalmente carregadas. Pelo contrário, a energia da obra está na força silenciosa de algumas interações. Quando Rubens está se arrumando para sair e tem aquele que seria seu último contato com a família, ele diz à filha que logo estará de volta e se despede afetuosamente também de Eunice. Mas este momento derradeiro é colocado no filme de maneira desdramatizada, sem exaltações sentimentais ou notas musicais agudas direcionando a recepção do espectador, de modo que o momento reste ainda mais cruel. Rubens, no fim das contas, não sabia que aquele seria seu último dia com a família, e portanto todos agem, e continuam agindo depois, com esperança de que vão se ver outra vez. Não que os personagens sejam tratados com pena, mas uma certa inocência e a esperança pelo reencontro os colocam, moral e humanamente, do lado oposto ao dos golpistas.

Já do ponto de vista da linguagem, o filme mantém uma sobriedade notável, seja com a narrativa por omissão, não mostrando graficamente a violência da tortura e deixando-a aparecer apenas no enervante desenho de som, ou com as elipses que reproduzem a desorientação na prisão e escondem o conteúdo da conversa entre Eunice e Eliana na praia antes da mudança para São Paulo, ou ainda com os movimentos de câmera lentos e enquadramentos estáticos. Ou seja, “Ainda Estou Aqui” não está interessado em qualquer tipo de virtuosismo estético, mas sim na transparência que nos conecte mais à tragédia de Eunice e sua família,

            Fernanda Torres, vivendo a matriarca da família, conduz o filme com uma interpretação brilhante, repleta de delicadeza. O primeiro plano que vemos do filme é dela, com a cabeça submersa no mar saindo à medida que ouve um som de helicópteros no céu. Mais tarde, enquanto tiram uma foto na praia, Eunice novamente volta a atenção para tanques que passam na avenida. A personagem se dá conta, cada vez mais, da onipresença dos militares, e vemos em seus olhos uma apreensão que, no entanto, não chega à superfície da personagem. Isso porque Torres, de forma muito inteligente, escolhe dar vida a uma Eunice resoluta, que externaliza microssinais de medo e insegurança, mas logo os cobre com a força necessária para cuidar de sua família após o desaparecimento do marido.

Um ótimo  exemplo é a genial cena em que Rubens é levado, e Fernanda modula os músculos tensos do rosto, os passos lentos e a entonação vacilante da voz para soar calma, mas sem esconder totalmente o temor pelo marido, por si e pelos filhos sitiados por um bando de homens armados. Outro destaque da atuação, que define a escolha feita pela atriz e pelo diretor, se dá quando Eunice incentiva os filhos a sorrirem para uma foto que será publicada em uma revista, a despeito do pedido do fotógrafo para que eles posem entristecidos. Não há autopiedade, comiseração ou condescendência da atriz com a personagem ou de Eunice em relação a si mesma, tal como nas protagonistas de tragédias clássicas gregas, um valioso conselho que Fernanda recebeu de ninguém menos do que a mãe.

            “Ainda Estou Aqui” tem dois interessantes saltos no tempo, para momentos estratégicos da vida de Eunice e sua família. No primeiro, a narrativa avança para 1996, 25 anos depois da morte de Rubens, quando sua esposa, já uma advogada em defesa dos povos originários, finalmente consegue, a partir da pressão ao governo brasileiro, a certidão de óbito do marido. É nesta passagem do filme que dois filhos do casal (um deles, o próprio Marcelo Rubens Paiva) têm um belo diálogo sobre o momento em que cada um enterrou simbolicamente o pai, já que a despedida lhes foi negada pela ditadura. Temos também neste trecho uma rememoração à la “Titanic” (1997) da convivência de Rubens com a família. Após sabermos tudo o que aconteceu, lá está ele, novamente dançando e brincando com os filhos em imagens analógicas que havíamos visto serem gravadas nos primeiros momentos do filme, uma construção que reforça muito a ausência daquela figura e todos os direitos retirados dele e de sua família.

Passam-se então mais quase 20 anos, e desta vez temos Eunice (Fernanda Montenegro) já no fim da vida, acometida pela Doença de Alzheimer. A personagem parou de falar e interagir, mas Fernandona é uma atriz tão gigante que, em dois trechos de menos de 5 minutos no total, seus olhos dizem tudo à medida que Eunice vê na televisão uma reportagem sobre a Comissão Nacional da Verdade e é colocada no meio da família para uma foto. Um final óbvio e apelativo, que me veio à cabeça enquanto assistia ao filme, seria Eunice pegando a mão de um dos filhos para a foto final. Felizmente, porém, neste encerramento os roteiristas e o diretor parecem não estar interessados em fazer o público chorar, mas sim em mostrar a integridade daquela família após tudo o que viveram, ressoando de forma austera, mas poética, o título do longa.

            “Ainda Estou Aqui/’ é um filme elegante, sensível e bem realizado. O longa-metragem retrata um momento obscuro da sociedade brasileira, sendo ao mesmo tempo a crônica de uma época e o relato da tragédia de uma família. Os personagens a certo momento vão assistir a “Blow-Up – Depois daquele beijo” (1966), filme símbolo da contracultura, e são abordados por policiais violentos em uma blitz. “O Diário de Anne Frank”, outra triste história passada em meio ao autoritarismo, é dado de presente a uma das filhas do casal. Vera, a mais velha e mais combativa dos filhos do casal, tem pôsteres de “Psicose” (1960) e “A Chinesa” (1967). O novo filme de Walter Salles, entretanto, não poderia ser mais brasileiro e mais atual, refletindo questões até hoje não resolvidas sobre a história do país. O nome do longa-metragem pode se referir à memória de Rubens, à luta de Eunice, ou ainda, ao próprio cinema nacional, exemplo em matéria de resistência. Com ou sem Oscar, o cinema brasileiro nos ajuda a lembrar: “Ainda Estou Aqui”, grita silenciosamente o Brasil esquecido pelo Brasil.

Cotação por ossos: 9,0

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