Noite histórica em Belo Horizonte: Filmes restaurados de José Mojica Marins são exibidos pela primeira vez no Brasil

Trilogia do Zé do Caixão ganhou maratona especial no Cine Humberto Mauro

Antônio Pedro de Souza

Belo Horizonte, sexta-feira, 04 de outubro de 2024. A data marcou a primeira exibição pública no Brasil da trilogia original do Zé do Caixão, criação máxima do cineasta José Mojica Marins, restaurada em 4K. Os filmes compuseram a Maratona Cadavérica, realizada pela gerência de cinema do Cine Humberto Mauro, tradicional sala de projeção localizada no centro da capital mineira.

A maratona integrou a mostra O Estranho Mundo de Zé do Caixão, que segue em cartaz até o dia 10 de outubro, trazendo dez filmes do cineasta que definiu o gênero de terror no cinema brasileiro.

O momento histórico foi definido por Vitor Miranda, gerente de cinema da Fundação Clóvis Salgado, como “uma grande honra para o Cine Humberto Mauro e para a Fundação Clóvis Salgado. Mojica era um artesão cinematográfico, alguém profundamente comprometido com a sua arte. Ele não apenas dirigiu e atuou, mas também se envolveu profundamente na criação dos cenários, figurinos e efeitos especiais de seus filmes, que são conhecidos pela capacidade de provocar e perturbar. O mais justo seria dizer que a filmografia do Mojica é marcada por um espírito de experimentação e uma abordagem autoral extraordinária. O Zé do Caixão tensiona alguns dos principais paradigmas da nossa sociedade, ao mesmo tempo revelando aspectos da cultura e da identidade brasileiras. A mostra em sua homenagem, ao disponibilizar as produções restauradas de forma gratuita e evocar novos pensamentos e olhares sobre a sua obra, busca promover uma chance de reavivar e democratizar a experiência sombria, criativa, fascinante e provocativa despertada pelo cinema desse autor brasileiro.”

Frame de “À Meia-Noite Levarei Sua Alma”

O Cine Humberto Mauro já recebeu José Mojica Marins como comentarista em 2013, durante a lendária mostra Hitchcock é o Cinema, na projeção do filme Os Pássaros (1963). Poucos anos depois, a trilogia do Zé do Caixão foi exibida dentro da maratona Terror no Parque, no gramado do Parque Municipal Américo Renné Giannetti. Em 2022, durante a mostra dedicada ao cineasta Tim Burton, À Meia-Noite Levarei Sua Alma foi reexibido em uma sessão paralela: dentro do Cine Humberto Mauro e nos jardins do Palácio das Artes, exatamente à meia-noite.

A atual exibição dos filmes de Marins em Belo Horizonte dá o pontapé inicial para uma turnê que deve percorrer outras capitais nos próximos meses. Vai ser a oportunidade para cinéfilos brasileiros conhecerem ou reverem os filmes icônicos do cineasta, em uma versão ainda mais bela.

Para celebrar o feito inédito no Brasil, a maratona no Cine Humberto Mauro contou com as presenças de Carlos Primatti, jornalista e especialista em cinema brasileiro; Crounel Marins, filho de José Mojica e guardião da obra do pai; e Paulo Sacramento, cineasta responsável pela montagem de Encarnação do Demônio e nome a frente do processo de restauração das obras.

Frame de Esta Noite Encarnarei em Teu Cadáver

Sacramento deu uma palestra sobre o restauro dos filmes. A conversa com o público durou quase duas horas, durante as quais o cineasta exibiu frames de diversas fontes e qualidades, mostrando e contando como se deu o resgate do material. Em seguida, ele mostrava os mesmos frames já com a qualidade 4K. Os resultados surpreenderam o público.

A artista plástica e crítica cinematográfica Yasmine Evaristo, elogiou o trabalho da equipe de Paulo e suas explicações acerca do restauro: “A palestra com o Sacramento foi incrível, pois possibilitou o entendimento de como o processo de restauração de filmes é complexo e laboroso.” Ela, que ficou para a maratona, relatou após as sessões: “O resultado visto em tela é fabuloso e muito generoso com a obra do Mojica. O resgate das cores e a riqueza de detalhes apresentada tornam as duas partes iniciais da trilogia do Zé do Caixão mais espetaculares do que elas já são.”

Frame de O Estranho Mundo de Zé do Caixão

LONGO PROCESSO

A restauração dos longas ocorreu entre 2022 e 2023, tendo a frente o cineasta Paulo Sacramento, com o auxílio de Carlos Primatti. O projeto foi financiado pela Arrow Films, empresa do Reino Unido que lançou as cópias em 4k nos EUA e Inglaterra no formato Blu-Ray. Possivelmente, os filmes devem ganhar um lançamento brasileiro em mídia física em 2025.

Durante a palestra, Paulo Sacramento explicou o meticuloso processo de restauração dos longas: Primeiro, foram verificados os originais mais antigos ainda existentes – sejam negativos ou interpositivos (duplicatas produzidas apenas para serem preservadas e gerarem novas duplicatas com o passar do tempo). Muitos desses materiais apresentavam problemas de conservação. Também foram verificadas cópias lançadas em DVD ao longo dos anos – algumas com baixa resolução, outras em cópias mais definidas. E, por fim, exemplares restaurados pelo Canal Brasil, que os exibe regularmente. A partir dessas quatro matrizes (negativo/interpositivo, DVD 1, DVD 2 e Canal Brasil) a equipe comandada por Paulo Sacramento foi chegando a um consenso sobre nitidez, cor, contraste e muita coisa passou a ser recuperada. Em um dos frames de Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver, por exemplo, foi possível recuperar a textura das nuvens vistas ao fundo da cena. Nas versões anteriores, o céu estava “estourado” (luz forte, sem ser possível distinguir se havia nuvens ou não). Em À Meia-Noite Levarei Sua Alma, foi feito o resgate de uma cena em que os personagens chegam à casa da cigana para terem o futuro lido por ela: durante o processo de restauro, foi percebido uma anomalia na iluminação, que deixava o frame piscando ininterruptamente.

Outros detalhes que foram corrigidos, segundo Sacramento, foram as temidas “marcas de durex”: muitas vezes, um negativo se partia e era necessário colá-lo, às pressas, com uma fita adesiva. Só que o calor dos projetores fazia que, com o passar do tempo, essas fitas fossem derretendo e criando bolhas sobre o material. Embora rápido, é possível perceber algumas marcas deformando as cenas durante a projeção. Isso conseguiu ser revertido. Ainda, o acúmulo de poeira, riscos e ataques de fungos aos materiais mais antigos. Em alguns casos, o uso excessivo dos filmes fez com que as películas mudassem de forma (encolhessem ou esticassem, por exemplo), causando anomalias nas imagens: uma caixa registadora que “entorta” em cena, um cacho de bananas que “estica”, além de várias trepidações que fazem com que as margens das cenas “pulem na tela”, como se os filmes tivessem sido filmados com uma câmera de mão, e não câmeras estáticas em um tripé. Tudo isso foi corrigido ou, pelo menos, atenuado no longo processo de restauração.

A riqueza de detalhes impressiona na restauração de O Despertar da Besta

Problemas no áudio também foram minimizados, corrigindo o sincronismo em diversas cenas, já que os filmes de José Mojica Marins eram, em grande parte, dublados após o término das filmagens.

Outro fato curioso percebido durante a restauração, foi em relação ao longa de 1968, O Estranho Mundo de Zé do Caixão: Na primeira história, O Fabricante de Bonecas, há um longo trecho cujo diálogo foi apagado e apenas a música de fundo é ouvida. O filme foi comercializado assim por décadas e em uma das cópias em DVD, o próprio José Mojica Marins fala sobre o “estranho sumiço do diálogo no filme”. Porém, o diálogo existiu e chegou a ser comercializado em algumas cópias. Aqui, além do restauro das imagens e sincronia de áudio, precisou ser feito um trabalho de detetive para descobrir essa cópia quase perdida. Ela foi encontrada e o diálogo foi reinserido na versão em 4K, tal como havia sido criado em 1968.

Mesmo Encarnação do Demônio, filme mais novo de toda a cinegrafia de Marins, ganhou uma restauração. Paulo Sacramento conta que o trabalho foi mais leve, devido ao material original ainda estar em boas condições, mas algumas correções foram feitas e, nas cenas de flashback, em que são mostrados alguns momentos dos longas dos anos 1960, o filme ganhou o mesmo cuidado das obras anteriores.

Cores mais realistas e detalhes nas cortinas, papéis de parede e tecidos são uma pequena amostra do meticuloso trabalho de restauração. Frame de Finis Hominis: O Fim do Homem

A HISTÓRIA

José Mojica Marins (1936-2020) havia feito os filmes A Sina do Aventureiro e Meu Destino em Tuas Mãos entre as décadas de 1950 e 1960 e, durante a produção do seu terceiro longa, teve um pesadelo em que um vulto o levava para um túmulo. Assustado com a visão, ele rascunhou o personagem que o consagraria, mudou o roteiro que estava desenvolvendo e alterou, para sempre, o curso do cinema de terror no Brasil. Nascia, assim, Josefel Zanatas ou, simplesmente, Zé do Caixão.

A trilogia original de Zé do Caixão é composta pelos filmes À Meia-Noite Levarei Sua Alma (1964), Esta Noite Encarnarei em Teu Cadáver (1967) e Encarnação do Demônio (2008). Juntos, os longas contam a busca incessante de Zé do Caixão em gerar o filho perfeito e garantir, assim, a eternidade de seu sangue. E ele está disposto a matar qualquer um que ousar interromper seus planos. Para Zé do Caixão, apenas as crianças são puras de coração e, por isso, devem ser respeitadas e protegidas a todo custo, fato que fará o personagem sofrer um grande trauma na segunda parte da trilogia.

O personagem, porém, apareceu em outras obras do cineasta, como na antologia O Estranho Mundo de Zé do Caixão em que, há um personagem chamado Oaxiac Odez (matou a charada?), além dos programas de TV que reutilizaram o nome do filme: na TV Tupi, em 1968, e no Canal Brasil (programa de entrevistas) nos anos 2000. Zé do Caixão se transformou em uma marca, um símbolo, sendo praticamente impossível distingui-lo de seu criador e intérprete.

Frame de Quando os Deuses Adormecem

VEM AÍ:

            A mostra inédita no Brasil segue em cartaz até o dia 10 de outubro no Cine Humberto Mauro (Avenida Afonso Pena, 1537, Centro de Belo Horizonte). Os ingressos são gratuitos e devem ser retirados uma hora antes de cada sessão, na bilheteria do cinema. A dica é chegar cedo para, além de garantir o ingresso, passar no Café do Palácio e saborear alguns dos quitutes vendidos por lá. O momento também é uma oportunidade para conversar com outros cinéfilos e com o pessoal da gerência de cinema do Cine Humberto Mauro. A experiência valerá a pena.

            Confira a programação:

05/10/2024

16:00 – Finis Hominis – O Fim do Homem (1971)

18:00 – Quando os Deuses Adormecem (1972)

20:00 – A Estranha Hospedaria dos Prazeres (1976)

Frame de A Estranha Hospedaria dos Prazeres

06/10/2024

20:00 – Inferno Carnal (1977)

07/10/2024

18:00 – O Despertar da Besta (1970)

20:00 – Finis Hominis – O Fim do Homem (1971)

08/10/2024

16:00 – Delírios de um Anormal (1978)

17:30 – Quando os Deuses Adormecem (1972)

Frame de Delírios de um Anormal

09/10/2024

17:00 – Inferno Carnal (1977)

19:00 – A Estranha Hospedaria dos Prazeres (1976)

21:00 – O Estranho Mundo de Zé do Caixão (1968)

Frame de Inferno Carnal

10/10/2024

16:00 – À Meia-Noite Levarei Sua Alma (1964)

18:00 – Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver (1967)

20:00 – Encarnação do Demônio (2008)

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Capa: Encarnação do Demônio

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