Novo filme com Joaquin Phoenix como o personagem da DC, desta vez ao lado de uma
apagada Lady Gaga, não aproveita bem a proposta musical, mas entrega uma experiência plasticamente belíssima e conceitualmente coerente
Lucas Oliveira
“Coringa: Delírio a Dois” (2024), novo filme de Todd Phillips centrado no famigerado
personagem da DC, só poderia ser um musical. O longa-metragem mergulha na fantasia
elaborada por Arthur Fleck para sobreviver à realidade inclemente que o cerca, de tal sorte
que apenas o gênero da fabulação por excelência seria apropriado a esta história. Na
direção contrária, a obra estrelada por Joaquin Phoenix se impõe o desafio homérico de
fazer um musical nos moldes clássicos, em uma contemporaneidade (intra e extrafílmica)
marcada por cinismo, desilusão com o futuro e fatalismo. Chegamos então ao paradoxo que
parece perseguir esta sequência do aclamado filme de 2019. É possível recorrer ao lirismo
em um mundo no qual ele já foi dado como morto? “Coringa: Delírio a Dois” parece tentar, e
o resultado é uma obra estranha, que se equilibra penosamente para manter uma unidade
de tom, parecendo acanhada de se entregar de fato ao gênero cinematográfico a que
pertence, mas é curiosamente coerente com sua proposta em todas as escolhas temáticas
e narrativas.
Existe aqui um filme duro, dramático e pesado acerca de um encarcerado em
Arkham cuja luta contra os próprios traumas não terminou com os assassinatos do primeiro
filme. Este filme é soturno, com uma trilha grave muito bem concebida pela compositora
islandesa Hildur Guðnadóttir e uma cinematografia escura, esverdeada e naturalista
entregue pelo diretor de fotografia Lawrence Sher. Ao mesmo tempo, há outro filme, sobre a
paixão nascente de Arthur Fleck e Harleen “Lee” Quinzel (a Arlequina, interpretada por Lady
Gaga), que é mostrada através de cores vivas, cenários pintados e muitos flares, e se faz
ouvir por meio de uma trilha eclética, com grandes sucessos do cinema e da música
popular.
São dois filmes, ilustrando o principal conceito da história: a duplicidade de Arthur
Fleck e do mundo à sua volta. Quais mundos são possíveis, e quais personas cada um
deles requer? O longa-metragem já começa a trabalhar essa duplicidade logo no início, com
a sequência animada criada pelo renomado Sylvain Chomet, na qual vemos, explicitamente,
a disputa entre dois Arthurs/Coringas para habitar o mesmo corpo. Depois dela, somos
jogados em um elegante plano-sequência mostrando a rotina do protagonista real na prisão,
e aí entramos no mundo de verdade, hostil ao personagem e a qualquer concepção outra
de futuro. Com o avançar da trama, por cerca de metade do tempo de duração, o filme se
passa em um tribunal – a representação máxima da concretude e institucionalidade. As leis,
protocolos e penas, em tese, começam e terminam sem abrir margem para o que poderia
ser, preferindo ficar restritas a o que está dado.
Os roteiristas Scott Silver e Todd Phillips, todavia, povoam todo o filme de fraturas
fantásticas. Seja nas várias televisões com desenhos animados mostrada no decorrer do
longa, ou a partir das referências a filmes musicais canônicos. Logo nos primeiros minutos,
por exemplo, um plano zenital de Arthur e os policiais deixando a prisão em direção ao
consultório de uma psicóloga mostra os oficiais com quatro guarda-chuvas coloridos, uma
citação clara ao icônico “Os Guarda-Chuvas do Amor” (1964), de Jacques Demy. Em outros
dois momentos, um na prisão e outro na já célebre escadaria do primeiro filme, a cenografia
e a iluminação lembram muito o clássico absoluto “Cantando na Chuva” (1952), de Gene
Kelly e Stanley Donen. Outro exemplar da Era de Ouro de Hollywood, “Roda da Fortuna”
(1953), de Vincente Minnelli, é assistido pelos personagens a certa altura.
As cenas musicais propriamente ditas, aliás, são talvez o elemento mais controverso
do filme. Com trilha totalmente formada por canções previamente existentes e já
consolidadas no imaginário popular, o filme consegue se sair bem quando recupera
músicas da primeira metade do século XX, portanto mais condizentes com as homenagens
aos musicais de ouro de Hollywood. “When the Saints Go Marching In”, “Get Happy” e
“Bewitched, Bothered and Bewildered”, entre outras, são utilizadas organicamente dentro da
trama e oferecem momentos musicais interessantes. Porém, o longa-metragem investe em
uma miscelânea de canções que, muitas vezes, parecem entrar de forma abrupta, apenas
para compor um momento musical, mas sem que a letra mova de fato a história, uma das
funções essenciais desse elemento em um filme musical.
“For Once In My Life” – usada de uma maneira que me lembrou muito as músicas
motivacionais sempre presentes nas trilhas de Howard Ashman e Alan Menken – e “If My
Friends Could See Me Now” escapam desse problema, por duas razões: no caso daquela,
trata-se da primeira música cantada por Arthur, em um cena que depois percebemos ser um
devaneio, mas cuja interpretação intimista e contida diz muito sobre o estado sentimental do
personagem, e acaba respondendo simbolicamente às indagações concretas de outras
figuras em torno dele; em relação à segunda, a cena ganha muito pela maior energia
investida nos vocais e também por mostrar os atores mais soltos na coreografia – recurso
expressivo praticamente ausente no restante do filme, algo bizarro para um musical. De
fato, é difícil atingir o nível de Fred Astaire e Debbie Reynolds, mas senti muita falta de
cenas mais elaboradas de virtuosismo vocal e coreográfico por parte de Joaquim Phoenix e
Lady Gaga, precisamente no estilo da Hollywood antiga.
Os dois intérpretes, aliás, apresentam um desnível explícito. Enquanto o ator já
premiado pelo mesmo papel continua entregando um personagem densamente construído,
a cantora tornada atriz acaba por representar ela própria. Phoenix cria um protagonista a
princípio retraído, com ombros caídos, postura curvada e olhos melancólicos, mas ganha a
oportunidade de mostrar uma outra persona, mais expansiva, leve e sentimental nas
sequências musicais. É impressionante como o ator consegue, com os músculos do rosto
retraídos e o olhar perdido, transmitir a vulnerabilidade do personagem, e é ainda mais
notável a forma como Phoenix transita para os extremos de “Coringa”, como durante uma
entrevista a um programa de televisão no qual ele subitamente se torna agressivo, em um
rompante digno de Annie Wilkes, ou nos momentos em que o personagem começa a rir
histericamente sem motivo aparente. Não vemos, em absoluto, o ator, mas sim o próprio
Coringa.
Lady Gaga, por outro lado, ganha muito pouco material para trabalhar, e aproveita
menos ainda as oportunidades que tem, compondo uma personagem insípida e
inexpressiva que acaba ficando totalmente apagada ao lado do Arthur Fleck de Phoenix.
Por mais que Gaga seja uma exímia cantora e uma clara apaixonada pela Era de Ouro de
Hollywood, é como se ela não se entregasse de fato ao papel, e por isso mesmo as
interações com seu colega de cena parecem protocolares, de modo que a paixão
arrebatadora entre Coringa e Lee soasse, tais quais as sequências musicais, mera ficção.
Até mesmo os ótimos Brendan Gleeson e Catherine Keener, que têm muito menos tempo
de tela, conseguem se destacar e ter mais presença do que a coprotagonista do filme.
O que salta de fato aos olhos, porém, é a impecável mise en scène concebida por
Todd Phillips. Desde o plano-sequência inicial, que nos puxa para a realidade do
personagem em uma série de movimentos de câmera muito bem articulados, até os planos
em contraluz que evidenciam o caráter onírico da paixão de Arthur e Lee, é possível
perceber que as imagens e os elementos da linguagem cinematográfica utilizados no filme
são fruto de um cálculo muito consciente e cuidadoso. É interessante, por exemplo, como o
diretor comunica o distanciamento de Arthur em relação à psicóloga que o atende
periodicamente: da forma mais direta e também mais imagética possível, colocando ambos
nas extremidades opostas do quadro, de modo a deixar clara a impossibilidade da
profissional de perscrutar aquela mente. Expressiva também é a cena em que, após
descobrir a verdade sobre Lee, vemos Arthur levar um tiro dela em uma sequência musical,
ou o instante em que a personagem de Lady Gaga, ao visitar o protagonista na prisão,
desenha um sorriso no vidro, e Arthur se move para enquadrar seu rosto ao desenho, em
seguida ensaiando um sorriso forçado.
Em outro momento, plasticamente lindíssimo, vemos o enquadramento se reduzir
até corresponder à abertura da cela onde Arthur é deixado sozinho, iluminado em contraluz
apenas pelos raios alaranjados que atravessam as grades da janela, até que seu rosto se
acende à medida que ele começa a fumar um cigarro, formando um ponto de luz em meio à
obscuridade onipresente. Trata-se, a propósito, de um filme visualmente belo, na acepção
mais comum que essa palavra tão subjetiva pode ter. Porém, mais que isso, aqui a beleza
está a serviço da dialética constante entre o real e o fantástico. Mesmo nos momentos
menos gloriosos para o protagonista, a beleza se infiltra, atestando que a realidade não tem
lugar na existência do protagonista.
“Coringa: Delírio a Dois” poderia ser um grande musical, mas acaba falhando em
trazer alguma contribuição memorável para o gênero. O filme é, isto sim, um exuberante
comentário sobre a sobrevivência da fantasia em um mundo desolado. Parece ser também
uma crítica à espetacularização da miséria humana, dada a midiatização do julgamento
envolvendo Arthur Fleck. Curiosamente, é no julgamento que o Coringa finalmente tem seu
holofote. Poderia-se pensar, em face de tudo isso, que o filme é simpático ao seu anti-herói,
visto cometendo atos infames de violência no primeiro longa-metragem. Prefiro acreditar, no
entanto, que este é um olhar mais multifacetado para aqueles que nunca foram vistos. Uma
tentativa de complexificar quem sempre esteve à margem. Retomando a pergunta de início,
é possível recorrer ao lirismo em um mundo no qual ele já foi dado como morto? A resposta
de Todd Phillips e Joaquin Phoenix aparentemente é sim. Basta viver ora na realidade, ora
na fantasia. Um plano no naturalismo, outro na hiperestilização. Um dia de Arthur Fleck,
outro de Coringa.
Cotação por ossos: 6,5
